O Contemplador: vivências estéticas e responsividade


OLHAR EXTRAPOSTO: OS ÓCULOS PARA UMA VISÃO LIMITADA
Alessandra Regina Vasconcelos da Silva (Universidade Federal do Pará)[1]
Elisama Fernandes Araújo (Universidade Federal do Pará)²
Orientadora: Rosa Brasil (Universidade Federal do Pará)

“Sabemos que o olhar é inquieto e inquiridor, que o olhar pensa, que é a visão feita de interrogação. O olhar requer uma intencionalidade e precisa ser educado para enfrentar a epopeia visual do nosso cotidiano. Sob essa perspectiva, a educação do olhar torna-se indispensável à sobrevivência, pois atua como forma de humanização e de cultivo, um dispositivo para a cidadania.”
(Sônia Alvares)

Um dia saímos por ai vivenciando. Olhamos para a rua e ela estava nua, não mais fantasiada de qualquer coisa mentirosa, não mais fingia ser agradável ou mesmo perigosa. Só havia por trás das paredes humanas: vergonha, sofrimento, solidão, violação e, por mais absurdo que seja, nenhum pouco de altruísmo, de alteridade com o próximo. Referimo-nos a uma vivência que fizemos – juntamente com um grupo do projeto - na praça das mercês, lugar onde os moradores de rua utilizam como moradia. Essa vivência fez-nos perceber o quanto enxergamos de forma limitada, o quanto nos acomodamos ao superficialismo das ideias alheias, sem nos preocupar com as nossas sensibilidades.
Isso ocorre porque geralmente, esperamos as noticias que circulam diariamente chegarem até nós, sem ao menos nos propor a vivenciar o fato. A partir disso, compreendi a importância de me deslocar do mundo que me deram para o mundo que preciso descobrir.
Percebi com isso que, a experiência estética é algo que se conquista diariamente. Não nasce de um olhar viciado ao horizonte dado, de um olhar limitado aos signos estabelecidos, pelo contrário, brota de uma inquietação, de um sentimento que surge por empatia e se expande: ganha forma, corpo, vida, significado. Portanto, olhar a vida de forma distante de si – ao se aproximar cada vez mais do universo alheio -, vivenciar espaços, edificar sentidos é a mais rica maneira de agir no mundo de forma responsiva. Dessa maneira, o projeto Entreletras desempenha um papel importante no que tange ao despertar estético do sujeito. Pois o projeto contribui para o aprimoramento das sensibilidades.
Esse refinamento dos sentidos fomenta a elaboração de textos estéticos, fruto do posicionamento ético e do despertar estético de um sujeito contemplador durante o processo de vivencia. Por conta disso, para as produções dos textos escritos – tal como as fotografias - são admitidas como essenciais às práticas de vivência, uma vez que cada vivência suscita no sujeito um novo olhar, dotado de informações das próprias vivências, ou melhor, das suas significações.
 Percebe-se, com isso, que o projeto toma como base a aplicação da teoria de Bakhtin ao fazer uso dos princípios que formam a concepção estética desse teórico. Dessa forma, as práticas e os resultados do projeto validam a teoria bakhtiniana, uma vez que são aplicações dos conceitos de estética e ética que foram (re)significados de Bakhtin.

Olhar o mundo para sentir e agir
Olhar o mundo da perspectiva bakhtiniana, como afirma Irene Machado, é capitar para além de um único ponto de vista, é apreendê-lo de uma forma abrangente, pois o olhar extraposto penetra no horizonte do contemplado de forma que este nunca poderá ver-se da mesma maneira.  Como afirma Bakhtin:
Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente, nossos horizontes concretos, tais como são efetivamente vividos por nós dois, não coincidem. Por mais perto de mim que possa estar esse outro, sempre verei e saberei algo que ele próprio, na posição que ocupa, e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar — a cabeça, o rosto, a expressão do rosto —, o mundo ao qual ele dá as costas, toda uma série de objetos e de relações que, em função da respectiva relação em que podemos situar-nos, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele. (1997, P.43)

 Isto é, o sujeito enxerga no outro o que jamais esse outro poderá ver. Por isso, olhar além de si é o primeiro passo para enxergar o mundo de maneira sensível e assim manter uma relação estética. Levando em consideração que a extraposição engloba tanto os elementos internos como externos ao excedente de visão; por conta disso, há uma relação dialógica, na qual o sujeito age à medida que dar novos sentidos ao objeto contemplado.
Irene Machado contribui com isso ao afirmar que “para Bakhtin o signo é tudo que significa” (MACHADO, 2005, p. 132), por isso ela ratifica que o: “o signo ideológico não só reflete como também refrata uma realidade” (MACHADO, 2005, p. 132). Compreende-se com isso, que o signo possui várias possibilidades interpretativas, mas quem possibilita esses desdobramentos, ou melhor, quem tece o bordado simbólico é o sujeito. Em outras palavras: “podemos dizer que, quando olhamos o mundo dessa maneira sensível e coesa, quando atingimos a essência e a unidade das coisas por meio da percepção, vivemos uma experiência estética.”( ALVARES, Sônia. 2010, pg107). Essa relação de constante reciclagem simbólica que o homem produz por meio de uma ação estética o torna respondente a uma situação, ao mesmo tempo responsável pelos seus atos éticos e humanos.
Humanos porque quanto mais o homem se predispõe a manter uma relação de empatia, de alteridade com o próximo, mais ele se sensibiliza com os seus problemas sociais. Afirmamos isso porque as vivências realizadas no projeto trouxeram para a “bagagem” dos contempladores olhares diferenciadas a respeito dos problemas sociais enfrentados por pessoas que estão à margem da sociedade – principalmente a vivência com os moradores de rua. Esse primeiro estágio de empatia dar suporte ao movimento de retorno do contemplador no qual ele expressa o universo significativo disposto pelo tecer e destecer do seu olhar.
O retorno é fundamental, pois, “somente tal consciência que retoma a si mesma confere forma estética, do seu próprio lugar, à individualidade apreendida desde o interior mediante a empatia, como individualidade unitária, íntegra, qualitativamente original”. (BAKHTIN, 2010, P.6). Isto é, não posso viver apenas no outro, limitar minha visão ao particular, é necessário completar o meu excedente de visão com a minha própria expressividade. Somente esse movimento acaba o objeto estético.

Exotopia: uma proposta de acabamento estético em produções textuais
Por meio das observações traçadas acima, pode-se constatar que da mesma forma como ocorre a teoria da extraposição, procede o funcionamento das produções do projeto. Afinal, destacam-se nas práticas do Entreletras as duas fases da exotopia.
A vivência é a primeira etapa desse processo, pois é nela que os sujeito-experimentadores retiram-se de si; colocam-se no lugar do outro; assimilam o seu meio, sua condições existências; para em seguida abstrair do que vivenciou um ponto de vista dotado de ações e reações, já que: “a capacidade de reagir ao meio ou interagir com ele é a prova de vida, mais ou menos como se diz que uma pessoa, quando deixa de responder a um estímulo qualquer, não mostra ‘sinais de vida’, sendo considerada morta” (BAKHTIN, 1895-1975, p. 92). Nota-se com isso que a vivência é de suma importância para se ter uma produção estética satisfatória, com relação a uma postura expressiva do sujeito, afinal, provoca no mesmo uma capacidade de reação aos estímulos que este se submete durante a vivência.
A segunda etapa, por mais abstrata que seja, pode ser observada em produções textuais ou nas fotografias feitas pelos participantes do projeto. É nessa fase que os sujeitos materializam os seus pontos de vista - despertados a partir da vivência - que são sempre dotados de uma nova forma de enxergar determinados fatos, pois o seu excedente de visão é irrepetível, por conta dos seus “atos éticos, responsáveis que tem início com o evento uni-ocorrente (fundador e irrepetível) da irrupção de seu ser, de sua vinda ao mundo, e só se interrompe com a morte, outro evento uni-ocorrente em cada vida individual” (SOBRAL, 2005, p. 110).
Por isso, as vivências do projeto levam os autores dos textos a produzirem a partir das suas próprias significações. Eis uma proposta de produção textual viabilizada não pela coleta de dados disponibilizados por outros (como a mídia), mas pela ação “individual”. Dessa maneira as vivências suscitam o despertar estético, ao mesmo tempo, em que o sujeito se posiciona, age responsivamente.
Vejamos uma noticia que circulou há pouco tempo sobre a violência praticada contra uma moradora de Rua em Belém:
“As imagens registradas através de um telefone celular pelo produtor cultural Piu Gibson, mostrando o covarde espancamento de uma mulher portadora de distúrbios mentais por dois seguranças particulares da feira do Ver-o-Peso, chocaram a população paraense. A vítima, identificada apenas como Ruth, foi espancada com chutes e golpes de cassetete pelos seguranças por pedir comida aos frequentadores das barracas de alimentação.”
http://diariodopara.diarioonline.com.br/N-141817 +SEGURANCAS+ESPANCAM+MULHER+QUE+PEDIA+COMIDA.html

            Trata-se de uma notícia que apenas reproduz os fatos como aconteceram. Não há propriamente atividade estética. Dessa maneira, mais importante para o projeto não é produzir a partir de uma coletânea de textos, e sim por meio da produtividade que a vivencia desperta no sujeito.
Destacamos agora um texto produzido no Entreletras que expressa à extraposição fruto da vivência na praça das mercês. Leiamos:

Tecendo o bordado dos excluídos
Há um céu nublado, há pingos de chuva nas nuvens e as Mercês a entoar sinos. Sinos de vozes que se propagam no silêncio e na multidão de pessoas que passam para admirar a estonteante construção da igreja que abriga imagens santificadas e imagens humanizadas. O metafórico grito surdo que é visto através do bordado físico e esquecido na existência da exclusão não é sentido, não é ouvido por quem passa por lá.
O tecido da memória parecia estar imóvel no olhar fixo que se desesperançou. Não encontrei sinais de alegria, nem de tristezas, os sentimentos se diluíram num único semblante incompreendido, tentei encontrar o olhar da vida, não consegui.
As praças, no centro de Belém, que um dia serviram de passarela para o desfile da moda Francesa da Belle Époque amazônica, hoje abriga os descamisados, trapos de vida desconsiderados, herança de um tempo passado que a sociedade sente medo, nojo. Gente absurdamente esquecida.
Tudo está centrado em cima de papelões. O futuro para eles acontece no presente. Pés descalços, desejo faminto, alma desarmada, sem família, amigos, o tempo não passa para quem não tem para onde ir.
O fio do bordado se desdobra numa lacuna que nem os Direitos Humanos são capazes de traçar à perfeição do acabamento. A liberdade para um morador de rua é um pano de fundo amarelo, desbotado, sem definição plausível que logo acaba debaixo do porrete de um soldado de milícias.
Como compreender o tear da vida nessas condições? Moradores de rua, mendigos, marginalizados, excluídos, indigentes, uma gradação que leva cada vez mais para o mundo insólito da existência humana profanizada. Este homem que um dia foi considerado divino a sociedade o encaminhou para o martírio. Santa Mercês, olhai, olhai com bondade esse vosso povo que chega a tua casa para pedir auxílio. Mas onde não há vida, não haverá reciprocidade. Pobre Mercês, pobre José e Maria de vida santa e Severina. Eis a injustiça social e divina.
(Aluna: Auricélia Silva Monte)

Pode-se observar o quanto esse texto possui um caráter sensível e coeso, o quanto há a extraposição, afinal a vivência possibilitou a escritora desenvolver um olhar diferenciado, extraposto. Um olhar que agiu sobre o meio de forma responsiva, ao significar a situação dos mendigos. Esse olhar foi deslocado para a produção escrita.

Além disso, o texto apresenta o processo estético mencionado. Pois, primeiramente, a vivência possibilitou à autora o envolvimento com os outros sujeitos. Uma vez que, ela descreve a maneira de ser dos mendigos, o cotidiano, os horrores dos moradores de rua de uma forma íntima, o que só poderia ser apreendido da perspectiva de quem é capaz de se deslocar de si, de se sensibilizar com o outro.
Portanto, fica claro o quanto a escritora possui uma visão própria do que presenciou, do que captou durante a vivência, afinal a sua (re) construção dos fatos não se dar de forma comum, enumerando acontecimentos rotineiros, e sim a partir de um labor, de uma elaboração estética. Dessa maneira, pode-se constatar segundo Irene Machado que:
É muito importante entender a vivência como determinação de dado posicionamento em interação com outros para se ter a dimensão do ato estético tal como o concebeu Bakhtin. (...). Contudo, o ato estético enquanto fenômeno acabado não se constitui pelos limites do plano vivencial, mas pelo excedente de visão. (MACHADO, 2006, p.142)

Isso comprova que as vivências e o olhar extraposto atreladas à produção escrita capacitam os sujeitos à elaboração de textos estéticos, pois estes passam a entender por meio da prática do dialogismo como obter um olhar pluridimensional, como agir no mundo de forma diferenciada.  Essa é uma forma do sujeito abrir os olhos e agir sobre uma determinada realidade, uma vez que passa a apreender o mundo por meio dos seus sentidos, das constantes significações por ele realizadas. Por isso, olhar para vida dessa perspectiva, implica, possivelmente, em modificar a escrita, em aprimorar os sentidos. Eis a importância da educação estética para a produção de textos escritos.
Então para se alcançar um resultado satisfatório no que se refere à produção de textos poéticos, refinados, sofisticados, o projeto conciliou vivência e produção escrita, pois a partir dessa indissossiabilidade chegou-se a uma possibilidade do sujeito modificar tanto a sua postura no mundo como alterar decisivamente a sua escrita.
Por conta disso, essa pesquisa mostrou que as práticas do projeto são uma forma de aplicar os princípios de criação estética para dar respaldo ao sujeito na hora de escrever as suas percepções do mundo por meio das suas reflexões e (re) significações. Uma vez que, após a vivência, ao ter passado por todo o processo de extraposição, o sujeito possui um maior domínio do fato que vivenciou. Afinal, as ações de vivência têm por finalidade descortinar as lentes limitadas do sujeito para mostrá-lo uma nova maneira de enxergar o mundo e, a partir disso, escrever, de forma que transcenda o básico e penetre nas camadas sensíveis da estética.
Assim, de acordo com as expectativas do projeto, e da conclusão da pesquisa realizada, compreende-se que o saber da experiência, do colocar-se diante do fato, e agir podem ser as principais ferramentas para se construir um texto estético, fruto da respondibilidade do sujeito-contemplador.
Passamos boa parte da vida acreditando que as explicações superficiais, ou ausência delas, são a melhor maneira de viver. Até que um dia... Bum! O desconhecido - o outro lado da história - ultrapassa as nossas fortalezas e contesta nossas frágeis definições. Nesse momento, só há duas saídas para esse encontro: ou você fecha os olhos e tenta sair vitorioso, ou se rende as experimentações, mesmo que isso prejudique o seu sono. A minha escolha foi abrir meus braços para acolher meus próprios horrores.
Alessandra Vasconcelos

REFERÊNCIAS:
ALVARES, Sonia. Educação Estética para Jovens e Adultos. São Paulo:
Cortez, 2010.
BAKHTIN, M. Estética da Criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BAKHTIN, M. Para uma Filosofia do Ato Responsável. São Paulo: Pedro e João, 2010. 
CLARK, Katerina & HOLQUIST, Michael (trad. Guisburg). Mikhail Bakhtin. São
 Paulo: Perspectiva, 2004.
MACHADO, Irene. Os gêneros e o corpo do acabamento estético. In BRAIT, Beth. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2 ed. rev., Campinas (SP): Editora da UNICAMP, 2005.
SOBRAL, Adail. Ato/Atividade e Evento. In: BRAIT. Beth. Bakhtin: Conceitos- Chave. São Paulo: Contexto, 2005.




A Responsividade Bakhtiniana e os discursos sobre o futuro.
Allan PUGLIESE; Valdemir MIOTELLO

Quando falamos de futuro, imaginamos ou ouvimos histórias de um mundo totalmente diferente do que vivemos.  Ao articular esse conteúdo vemos, em sua produção estética, essa relação com o futuro, um não acabamento, como diria Bakhtin, uma relação pré-dada, pois o acontecimento existencial em seu todo é um acontecimento aberto (BAKHTIN, 1997:122).
Esse “não acabamento” mostra um futuro que poderá ser caótico, no qual existiria o fim da humanidade ou o sofrimento para os poucos que sobrarem. A comida seria escassa e as grandes corporações dominariam a agricultura, as doenças ganhariam dos remédios, as leis não seriam mais as mesmas. Essas falas são sempre relacionadas com textos antigos, como o de Nostradamus, as profecias Maias, e até com outros discursos sobre destruições em massa que já aconteceram anteriormente na terra. Alguns discursos são re-elaborados com as novas “tendências” apresentadas pela ciência, inclusive falam do trânsito chegando ao ponto máximo que uma cidade pode permitir, ou como uma explosão solar pode acabar com todo o sistema de comunicação do mundo.
 Parece até um filme de ficção científica, mas é um pequeno exemplo de milhares e milhares de discursos que compramos diariamente quando pensamos na nossa responsabilidade com o planeta. Os publicitários e marketeiros adoram utilizar desse discurso para criar produtos e propagandas que utilizam do nosso senso de responsabilidade para vender produtos “sustentáveis”, “ecologicamente corretos”. Mas qual a minha responsabilidade perante o mundo?
Cada um de meus pensamentos, com o seu conteúdo, é um ato singular responsável meu; é um dos atos de que se compõe a minha vida singular inteira como agir ininterrupto... Eu ajo com toda a minha vida, e cada ato singular e cada experiência que vivo são momentos do meu viver-agir. (BAKHTIN, 2010:44)

Na perspectiva de Bakhtin (1997: 279), “todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua”. Essa repetição de discursos é muito parecida com a relação dos discursos antigos com os novos discursos, o que gera um pensamento lingüístico sobre essa construção: como essa manipulação do discurso hegemônico pode mudar ou não a superestrutura? A partir desse enunciado, podemos perceber indícios sobre as conversas do cotidiano influenciando o discurso hegemônico e vice-versa.
Alguns pensam que sua parte não precisa ser feita, ainda embasam esse discurso com falas como: “do que adiantaria eu fazer minha parte se ninguém faz?” Outros grupos já participam ativa e responsivamente de qualquer ideia que possa parecer uma resposta para um mundo mais sustentável, porém de forma superficial. Um exemplo disso seriam formas de energias que parecem limpas, mas na verdade, poluem mais para produzir o natural, como o carro elétrico, que em países que a eletricidade nacional tem base no carvão, poluem a mesma coisa que um carro movido a um combustível fóssil.
Na base da unidade de uma consciência responsável não existe um princípio como ponto de partida, senão o fato do reconhecimento real da minha própria participação no existir evento singular, coisa que não poder ser adequadamente expressa em termos teóricos, mas somente descrita e vivenciada com a participação; aqui está a origem do ato de todas as categorias do dever concreto, singular e irrevogável. Eu também sou – em toda a plenitude emotivo-volutiva atuante... de tal afirmação – e realmente sou – totalmente, e tenho a obrigação de dizer esta palavra, e eu também sou participante no existir de modo singular  um lugar único, irrepetível, insubstituível e impenetrável da parte de um outro. Neste preciso ponto singular no qual agora me encontro, nenhuma outra pessoa jamais esteve no tempo singular e no espaço singular de um existir único. E é ao redor deste ponto singular que se dispõe todo o existir singular de modo singular irrepetível. Tudo o que pode ser feito por mim não poderá nunca ser feito por ninguém mais, nunca. A singularidade do existir presente é irrevogavelmente obrigatória. Este fato do meu não-álibi no existir que está na base do dever concreto e singular do ato, não é algo que eu apreendo e do qual eu tenho conhecimento, mas algo que eu reconheço e afirmo de um modo singular e único. Basta o simples conhecimento para reduzi-lo ao mais baixo grau emotivo-volutivo de possibilidade. Transformando-o em objeto de conhecimento, eu o universalizo: cada pessoa ocupa um lugar singular e irrepetível, cada existir é único. (BAKHTIN, 2010:96-97)

O discurso sobre as memórias de futuro apocalípticas fazem parte do jogo em que manipular ganha relevo, pois, no cotidiano, existe uma valoração sobre ele. As pessoas sentem-se responsáveis pelo mundo, e gostam de “comprar” esse discurso apocalíptico, que fala como o mundo vai acabar, até para pensar novas estratégias para evitar esse fim. A própria irresponsabilidade de atos individuais destrutivos devem ser vistos pela ótica da responsabilidade pessoal e grupal. Esse é o grande jogo que Bakhtin enunciaria. O embate entre os discursos


Algumas reflexões com um olhar bakhtiniano sobre uma perspectiva estética da obra "O Silmarillion" de J.R.R.Tolkien
 Alline Duarte Rufo[2]
adrufo@gmail.com
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar

O Silmarillion (The Silmarillion) de J.R.R.Tolkien publicada em 1977 conta a história da primeira era de Arda -  nome dado ao mundo que Tolkien criou em sua obra - desde sua origem até as primeiras batalhas e o surgimento dos seres que vivem nesta.
John Ronald Reuel Tolkien (1892-1973) foi além de escritor, professor universitário e filólogo britânico. Teve uma influente carreira acadêmica mais ficou mundialmente conhecido pelas suas obras literárias entre elas a sua mais famosa O senhor dos anéis (The Lord of the Rings), publicada em 1954-5.
Desta obra podem se depreender várias formas de estudo com vários olhares e em diferentes áreas, mas com uma olhar bakhtiniano pode observar alguns aspectos em particular.
Pode-se pensar em uma relação de Mundo Primário e Mundo Secundário onde o Mundo Primário corresponde a realidade e o Mundo Secundário a imaginação. J.R.R.Tolkien em seu ensaio acadêmico Sobre História de Fadas (Tree and Leaf)  nos fala dessa relação que Bakhtin também trata em Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.
Segundo Tolkien, quando estamos no Mundo Primário tentamos trazer o Mundo Secundário para este para poder compreende-lo para Bakhtin essa oposição é essencialmente normal mas seria mais enriquecedor perceber que a Arte não se encontra separada da vida, ela se encontra dentro dela, no seu interior, devemos apenas lhe dar uma valorização, se é bom ou ruim, bonito ou feio.
Nessa questão, podemos perceber que quando se faz uma leitura de O Silmarillion, muitos tentam comparar a obra a vida real, ou seja, quando se lê a obra tenta-se trazer o Mundo Primário para o Mundo Secundário porém devemos perceber que a obra em si já é uma refração do mundo real e por isso devemos perceber que a Arte não se separa da vida, que a obra faz parte da vida como um todo e deve ser apreciada.
Olhando por outro ponto, podemos tratar da relação do autor com a personagem, nesse caso de J.R.R.Tolkien com a personagem Lúthien, que segundo este é a representação de sua esposa Edith e ele a representação de Beren. Quando o autor diz o que estava pensando ao criar determinado personagem ou fato na história é algo do qual ele não pode ter controle ou responder, porque ele fez parte do ato criador e por isso não pode falar de algo que participou. Tudo que ele disser  em relação ao ato criador será incerto, porque ele terá apenas o seu ponto de vista e o seu objetivo para falar. Dessa forma, quando Tolkien diz que Lúthien é a representação de sua esposa, é do ponto de vista dele, e da sua vivencia como autor com poder sobre o destino da personagem que ele cria ,como representação de sua esposa e da continuação da história.
Esses são apenas dois olhares sobre a obra O Silmarillion, mas esta pode ser tratada de diversos pontos, os pontos em especial aqui levantados tratam-se de pontos que eu mesma trabalhei sobre eles, tentando aprofunda-los. Cada um que pegar a obra como trabalho para si, contemplara um ponto estético desta e será responsável por este ponto em questão. Uma obra não é vista apenas de um único ponto, com apenas uma única interpretação mas ela é um todo axiológico inacabado, com várias interpretações e diversos olhares.

Bibliografia:
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch, 1895-1975. Estética da criação verbal. [Estetika sloviesnova tvortchestva]. Paulo Bezerra (Ed.). 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch, 1895-1975. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do metodo sociológico na Ciência da Linguagem. Michel Lahud (Trad.). 7 ed. São Paulo: Hucitec, 1995.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich, 1895-1975. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Aurora Fornoni Bernadini (Trad.). 4 ed. São Paulo: UNESP, 1998.
TOLKIEN, John Ronald Revel, 1892-1973. O Silmarillion. [The Silmarillion]. Christopher Tolkien (Org.). Waldéa Barcellos (Trad.). 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
TOLKIEN, John Ronald Revel, 1892-1973. Sobre histórias de fadas. [Tree and Leaf]. R.Kyrmse (Trad.). S.Paulo: Conrad, 2006.


MEMÓRIA DISCURSIVA E VIVÊNCIA ESTÉTICA: DO VER AO VIVER O OUTRO PARA A PRODUÇÃO DE SENTIDO
Amanda Rodrigues Figueiredo (UFPa) – amandarf2004@yahoo.com.br
Gabriela Brito de Freitas (UFPa) - gabrielabrito_2009@yahoo.com.br

                                     
Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a “o-posição” (nossa maneira de opormos), nem a “imposição” (nossa maneira de impormos), nem a “proposição” (nossa maneira de propormos), mas a “exposição”, nossa maneira de “expormos”, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas se “ex-põe”.
(Larrossa - Retirado do artigo “A leitura de mundo pela leitura de generos discursivos enquanto atividade experienciada”, de Aline Maria Pacifico Manfrim, 2006.)
           
O ser humano é formado – e é formador – de inúmeros discursos constantemente. É um ser comunicativo, expressivo, capaz de emitir e atribuir conceitos, concepções, valores e juízos sobre alguém ou algo. O tempo todo estamos em contato com várias pessoas e com seus discursos, suas opiniões e seus pontos de vista. Esses discursos alheios são imprescindíveis para o processo de construção de sentido sobre o outro e sobre nós mesmos.
Esse intenso fluxo de troca de informações – seja por meio de uma conversa pessoal, virtual, um texto escrito, uma imagem – é uma parte muito importante do processo de construção de conhecimento, ou formação de opinião sobre alguma coisa ou algo. Somos constantemente induzidos a acreditar em pesquisas, reportagens, noticias... Nas várias as formas de tentar influenciar o outro a tomar um determinado posicionamento.
As inúmeras informações que recebemos diariamente são muito significativas para a construção do sujeito discursivo pelo processo da alteridade. Somos “compostos” pelas nossas concepções sobre o mundo e pelas concepções dos outros com que temos contato. Os discursos dos outros influenciam muito na formação das nossas opiniões. Segundo Silva (2007):
                                           (...) O outro se revela por meio de um papel ativo no processo da comunicação, pois não cabe a ele decodificar uma mensagem, ao contrário, ele é constitutivo do discurso do um. (...) p. 87.

Com isso, o processo de comunicação se dá em uma esfera em que eu sou um sujeito que produz e recebe informações ao mesmo tempo. Um sujeito necessita de um outro para esse processo. E essa troca é bem perceptível e mais ativa, de certa forma, na produção de textos escritos, em que se tem um sujeito que escreve para outros sujeitos, e que tenta, por meio do seu texto, influenciar esses outros. As crônicas que circulam em revistas, por exemplo, são textos escritos por alguém que tem certo prestigio, ou status na sociedade - até para dar mais “valor e credibilidade” ao texto – para uma diversidade de leitores, que provavelmente terão uma nova perspectiva sobre determinado assunto a partir da leitura de um texto desse gênero, vinculado em uma revista de grande suporte.
Essas informações absorvidas em textos como esse, formam a sua memória discursiva. Quando ele – o sujeito – é questionado, instigado a falar ou se posicionar – principalmente se ele não tiver nenhum contato propriamente dito, vivenciado, experimentado com esse objeto – ele recorre à sua memória discursiva para buscar informações guardadas sobre esse assunto. Segundo Guerra e Trannin (2006, p. 145),
Por sua materialidade repetível, determinada pela relação entre a prática discursiva e instituição, o enunciado produz um campo de estabilização, cristalizando sentidos na memória discursiva.

Ou seja, nossa memória discursiva é composta por uma série de informações e discursos cristalizados sobre vários assuntos. Geralmente, essas memórias estão apenas na esfera do discurso e não do ato vivenciado sobre o assunto. O que gera, na maioria dos casos, outros discursos ainda no campo do não contato com o objeto, discursos meramente informativos, por vezes preconceituosos.
Foucault (1971) afirma que, de certa forma, o sujeito teme aquilo que é exterior, aquilo que é externo. Pode-se dizer, com isso, que, ao emitir um juízo de valor sobre algo que não é da interioridade do “eu”, há uma tendência para se posicionar de modo mais informativo, objetivo, pouco específico, sobre aquele assunto. Uma opinião pouco particular, mais generalizada e enraizada em concepções vindas de outros.  
Isso implica dizer que para que a produção de sentidos e de discursos tenha mais validade, mais propriedade, subjetividade não é preciso – somente – ter contato com os discursos vindos de outros. Segundo Machado (2005, p. 141),
                                           Uma pessoa só vê aquilo que está fora dos limites da visão do outro. Assim, os pontos de vista simultâneos completam-se na formação do todo, o evento dialógico. A composição estética é determinada pela relação dialógica entre as visões complementares, não pela visão em si. 
 
Todo esse contato com o outro, como visto, influencia de modo inevitável nossas atividades estéticas, aqui, especificamente, nossas produções textuais. Se escrevo sem vivenciar esteticamente, o que “fala mais alto” são as minhas memórias discursivas, aquilo que adquiri no decorrer da vida, por meio de discursos do outro. Se escrevo após uma vivência estética relacionada ao meu objeto, minha produção desperta muito mais prazer estético; é muito mais profunda. É assim que o
primeiro momento da atividade estética é a vivência: eu tenho de viver (ver e conhecer) aquilo que está vivendo o outro, tenho de me colocar no seu lugar, como se coincidisse com ele [...]. Devo assumir o horizonte vital dessa pessoa tal como ela o vive; dentro desse horizonte, contudo, há lacunas que só são visíveis do meu lugar [...] (BAKHTIN, 1989, p.30).

Até que ponto pode uma vivência influenciar na vida de um indivíduo? Quando vivenciamos, quando saímos temporariamente de nós mesmos e nos colocamos sob a condição do outro, algo muda. Pouco ou muito, muda. Jamais enxergaremos a mesma situação de formas idênticas, antes e depois da vivência. Vivenciar nos faz, no mínimo, abrir os olhos e conseguir ver aquilo que outrora nos era vetado pelos limites do nosso próprio eu, de nosso próprio mundo, nossas próprias experiências. E talvez nossas experiências, por mais variadas que tenham sido, não consigam alcançar a dimensão que o olhar extraposto é capaz de atingir.
Quando consideramos o olhar que temos sobre os moradores de rua, exemplifiquemos, é incrível a variação de “olhares” que podem incidir sobre esses seres, ao mesmo tempo tão perto e tão distante de nós. Existem aqueles que apenas os olham, mas não os enxergam; não capturam uma essência maior neles que não a de inferioridade, pobreza, necessidade. Se falo ou escrevo sobre moradores de rua sem vivenciar é geralmente isso que acontece: escrevo sobre, a respeito de algo, como um texto informativo qualquer, que diz respeito a um ser ou um evento, sem nada de especial. Quando falo ou escrevo depois de vivenciar, no entanto, chega a ser palpável a diferença de visão que uma extraposição pode nos proporcionar. Pode ocorrer de toda uma concepção, toda uma idéia já formada a respeito dos moradores de rua vir abaixo num só momento em que me coloco no lugar desse outro. Posso alterar completamente meu modo de enxergá-lo, de compreendê-lo, num simples ato de assumir o horizonte dessa pessoa. O que vai alterar é individual, são as “lacunas que só são visíveis do meu lugar”.
Observemos, então, um texto produzido por uma aluna do projeto Entreletras, da UFPA. Observemos a carência estética:
Certo dia entrei em uma igreja muito conhecida e venerada no centro de Belém, a Igreja das Mercês. É um templo grandioso em estilo barroco construída entre os séculos XVII e XVIII praticamente no inicio da fundação da cidade. Podemos encontrar nessa igreja uma arquitetura que resplandece a beleza e a riqueza que a igreja ostentava naquele período.
            A igreja fica em frente a uma praça no centro comercial de Belém, onde encontramos vários prédios históricos, casarões antigos que representa e são registros arquitetônicos da memória da cidade. (...)
Entretanto, o que mais chamou minha atenção foi perceber que o cenário daquela praça foi significativamente alterado. Os prédios antigos – que são tombados – também são tomados pela influência do comércio e pelo descaso com o patrimônio publico e o pior, com pessoas. Uma praça que antes era freqüentada por pessoas de relativa posição na sociedade, agora abriga pessoas – consideradas por alguns indigentes - pessoas a quem foram negados quase todos os seus direitos, ou pelo menos os principais como o direito de viver uma vida digna com as mínimas condições para sobrevivência. Ou pessoas até tem onde morar, mas que vão diariamente para a porta da igreja para pedir esmola.
            Pessoas que não tem ou que preferem não ter contato com seus familiares e que estão expostas às piores situações de descaso, não tem um canto fixo e digno que possam morar, não tem um lugar com um mínimo conforto que possam dormir, sem contar que também não tem nenhuma assistência do estado no que diz respeito a acesso a saúde e a educação. Pelo contrário, são geralmente marginalizados, discriminados e vistos como pessoas que representam um risco à sociedade, por estarem vulneráveis ao uso de drogas e a pratica de ‘coisas erradas’ como roubar para terem com o que comer. (...)
            E o pior é saber que há tantas pessoas que necessitam do mínimo de recursos para sobreviver com o mínimo de dignidade, enquanto outras usam dinheiro publico para enriquecer suas contas particulares e manchar ainda mais a imagem da política no país.
(Texto escrito por aluna do projeto Entreletras – UFPA, 2011)

Ao lermos o texto acima temos a sensação do texto dissertativo, uma apresentação de opiniões sobre uma situação, aqui, sobre os moradores de rua em Belém. Por não ter havido extraposição, é possível perceber a carência de estética na produção, como se a aluna estivesse apenas contando o que viu num dia em que olhou um pouco ao seu redor. Ela olhou, mas só sob sua visão, sem sair de si e se colocar no lugar do outro, sem se aprofundar na vivência.
Agora, observemos os fragmentos abaixo, escritos por alunos do mesmo projeto e instituição, no mesmo período, após vivência com os moradores de rua:
“Pergunto para que serve a ciência e suas tecnologias, a caridade de algumas instituições religiosas e até mesmo de pessoas que se consideram religiosas, e quem realmente faz uso dos direitos humanos? Para que serve uma esmola dada as pressas, a esmola dada por pena? E será que essas pessoas que perambulam pelas ruas necessitam somente de comida e dinheiro?” (Ivone Lopes)

“Ele, aos nossos olhos, é visto, na maioria das vezes, como parte do concreto, do asfalto, do chão em que ele senta, do banco em que ele deita; respeitá-los, prover a eles a dignidade da pessoa humana é mudar essa visão, mas é tão mais simples permanecer com o que já estamos acostumados, de nos acomodarmos com o que não nos afeta diretamente, e o mendigo continua sendo o que sempre foi... Parte do ambiente em que não damos importância.” (John Müller)

“A minha escolha foi abrir meus braços para acolher meus próprios horrores. Afinal, resolvi me indagar: como poderia passar indiferente a um alguém que esqueceu ser gente? Será que isso aconteceu quando ninguém mais a olhou como tal? Ou melhor, será que de tanto os outros a olharem como animal ela acreditou?” (Alessandra Vasconcelos)

Os trechos acima recortados foram escritos por alunos que praticam a extraposição e buscam aprimorar seu olhar estético, de modo a aprimorar sua forma de escrever e ressignificar seu modo de olhar o mundo e dele extrair suas concepções.
A vivência estética, assim, propicia, ao leitor – autor, um contato maior – e “experienciado” – com seu objeto em questão. O que nos faz afirmar que para conhecer e ter habilidade para falar sobre o outro é necessário não apenas algumas considerações vindas de discursos alheios, mas também uma relação de extraposição. Um processo em que eu entro em contato – direto – com o outro e passo pela experiência dialógica de ser o outro, sem deixar de ser eu e retirar da vivência estética minhas próprias considerações sobre meu objeto – ético e estético – de assunto. Somente me colocando no lugar do outro poderei melhor enxergar o mundo, poderei melhor conhecer a mim mesmo, pois “não é na categoria do eu, mas na categoria do outro que posso vivenciar meu aspecto físico como valor que me engloba e me acaba” (BAKHTIN, op. cit. 39).

REFERÊNCIAS
GUERRA, Vânia Maria Lescano e TRANIN, Juliana Batista. Discurso midiático: a alteridade e a construção da identidade dos “meninos de rua”. In: Discurso, alteridades e gêneros. São Carlos: Pedro e João Editores, 2006.
MACHADO, Irene A. Os gêneros e o corpo do acabamento estético. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, Dialogismo e construção do sentido. São Paulo: Editora da UNICAMP, 2006.
SILVA, Michele Viana da. O principio de alteridade: a respeito da natureza dos enunciados e do sujeito. In: O espelho de Bakhtin. São Carlos: Pedro e João Editores, 2007.


Um romance polifônico entre a contemplação e a ação:
O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago
Ana Clara Magalhães de Medeiros*

O gênero romanesco parece ser, desde a Modernidade, o que melhor possibilitou o equacionamento polifônico de vozes distintas, alcançando uma forma que, inacabada, permanece sempre plurisignificante. A trajetória do romance caminha no sentido de propiciar, cada vez mais, a inserção da voz do outro no discurso, como indicava Mikhail Bakhtin. O desembocar desse entrelaçamento utopista de vozes parece culminar no que a crítica latino-americana convencionou chamar de novo romance histórico[3].
O ano da morte de Ricardo Reis (1988) é obra de Saramago que se enquadra nessa tendência de fazer romance a partir de elementos históricos que, reconfigurados, transformam-se em matéria literária. Importa perceber como esse desdobramento romanesco – surgido a partir da década de 80 do último século, na literatura latino-americana e lusitana – compõe-se a partir de um todo dialógico possível somente a partir das condições criadas por gêneros antecedentes. A um só tempo, este novo tipo de romance dialoga com a tradição literária, com a cultura popular de que é reflexo, com o mundo prosaico em que se insere e com o passado que reconta.
O dialogismo começa no título e perdura por toda a obra: Ricardo Reis, poeta heterônimo criado por Fernando Pessoa, é aqui personagem que deambula por Lisboa sem encontrar modo de encaixar-lhe seus ideais de esteta neo-pagão. Saramago mantém o poeta em sua lírica e em sua biografia (inventada por Pessoa), mas recria as suas vivências e a ficção se reduplica:
Ora, Ricardo Reis é um espectador do espetáculo do mundo, sábio se isso for sabedoria, alheio e indiferente por educação e atitude, mas trémulo porque uma simples nuvem passou (...) Falta a Ricardo Reis um cãozito de cego, uma bengalita, uma luz adiante, que este mundo e esta Lisboa são uma névoa escura onde se perde o sul e o norte, o leste e o oeste, onde o único caminho aberto é para baixo, se um homem se abandona cai a fundo, manequim sem pernas nem cabeça (SARAMAGO, 2010, p. 87).

            O leitor, um pouco familiarizado com a poética de Reis, identifica com facilidade, nesse trecho, um dos mais célebres poemas do heterônimo: “Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo”. O narrador – que é mais comentador que contador – joga com a possibilidade de relativizar a sabedoria de manter-se em posição contemplativa frente ao mundo. Lança as hipóteses de alheamento ou indiferença para os espectadores “do espetáculo do mundo”. Os trechos literais retirados das odes de Ricardo Reis invadem a narrativa de forma prosificada, em uma enxurrada discursiva que mescla narrador, poeta e quantas mais vozes o leitor consiga depreender.
            Falta, contudo, ao poeta que dá nome ao romance um cão guia de cego, uma bengala, alguma luz, algo que o guie no caminho enevoado de Lisboa. A capital lusitana é descrita como cidade sem direção “se perde o sul e o norte, o leste e o oeste”, que tem como sentido único um buraco ao fundo, em que se cai “se um homem se abandona”.
            A partir desse trecho, delimita-se a primeira grande problemática da obra, que é justamente o cerco político autoritário de Portugal à época Salazarista – mais precisamente, em 1936, ano da morte de Fernando Pessoa e ano do suposto retorno do heterônimo Ricardo Reis à capital portuguesa depois de longa estadia no Brasil – em contraste com a postura estoica, contemplativa, “sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz”[4] do heterônimo pessoano. Enquanto a matéria histórica denota o monologismo totalitário, a tessitura narrativa aponta para a polifonia democrática.
As possibilidades dialógicas no referido romance de Saramago são inúmeras. O leitor de Borges identificará uma pista no livro (não) lido por Reis, The god of the labyrinth[5]. A tradição literária portuguesa também é fonte de investidas dialógicas no livro, que tem no primeiro e no último parágrafo referência aos Lusíadas, além de aparecerem vestígios de Almeida Garret e Camilo Peçanha, como também dos outros heterônimos pessoanos Alberto Caeiro e Álvaro de Campos.
Embora essas relações com demais autores sejam abundantes e importantes no romance, aqui, a análise dos recursos polifônicos estará centrada no aparecimento de três vozes principais: a dos poetas Ricardo Reis e Fernando Pessoa e a das camadas populares representadas por Lídia. Esse recorte justifica-se pela tentativa de mostrar como duas poéticas distintas apontam para condutas ideológicas também discrepantes e como o discurso oficial pode ser desnudado pela fala popular autêntica, quando esta se redimensiona no espaço literário. O narrador apresenta-se como o elemento decisivo na garantia da permeabilidade de todas as vozes.
Ficou dito que, frequentemente, aparecem fragmentos de poemas de Reis. Com Fernando Pessoa a incidência não é menor. O ortônimo aparece como contraponto do poeta pagão, pois, na contramão do monarquismo sossegado e inerte de Reis, Pessoa é o poeta que já está morto. Condição que acentua seus traços de artista pensador, autoconsciente de Mensagem ou d’ “A Hora Absurda”. Os encontros entre os dois personagens são momentos privilegiados de dialogismo dentro da narrativa. Ressalte-se que os dois interlocutores são muito peculiares, pois um deles é heterônimo, e, portanto, existe apenas no âmbito ficcional. O outro, embora tenha sido poeta “real”, já se encontra morto. Saramago dá voz a quem não pode falar – o fictício e o morto – para criar, no romance, de forma exagerada e irônica, a utopia dialógica que parece esvair-se, ao longo da história:
 (...) é difícil a um vivo entender os mortos, Julgo que não era menos difícil a um morto entender os vivos, O morto tem a vantagem de já ter sido vivo, conhece todas as coisas deste mundo e desse mundo, mas os vivos são incapazes de aprender a coisa fundamental e tirar proveito dela, Qual, Que se morre, Nós, vivos, sabemos que morremos, Não sabem, ninguém sabe, como eu também não sabia quando vivi, o que nós sabemos, isso sim, é que os outros morrem, Pra filosofia, parece-me insignificante, Claro que é insignificante, você nem sonha até que ponto tudo é insignificante visto do lado da morte, Mas eu estou do lado da vida, Então deve saber que as coisas, desse lado, são significantes, se as há, Estar vivo é significante, Meu caro Reis, cuidado com as palavras, viva está a sua Lídia, viva está a sua Marcenda, e você não sabe nada delas, nem o saberia mesmo que elas tentassem dizer-lho, o muro que separa os vivos uns dos outros não é menos opaco que o que separa os vivos dos mortos, Para quem assim pensa, a morte, afinal, deve ser um alívio, Não é, porque a morte é uma espécie de consciência, um juiz que julga tudo, a si mesmo e à vida, Meu caro Fernando, cuidado com as palavras, você arrisca-se muito, Se não dissermos as palavras todas, mesmo absurdamente, nunca diremos as necessárias (IDEM, IBIDEM, pp. 278-279).
           
            O admirador das odes de Reis ficará surpreso com o acuamento do poeta e com sua visão limitada do existir humano. A percepção abrangente que dá conta das inquietações existenciais é justamente a de Fernando Pessoa morto. A atual condição de Pessoa – a de defunto – confere a ele uma visão mais ampla que o faz enxergar como tudo o que se valora em vida é insignificante. Mostra ao esteta pagão que crer no viver como algo “significante” e não conhecer nada da Lídia ou da Marcenda que o cercam, é existir de forma mesquinha. A discussão entre o poeta e sua projeção heterônima é longa e hermética, perpassa questões políticas, contudo as transcende, para problematizar a própria condição humana em um mundo que estabelece muros opacos entre os homens. O diálogo lembra a gravidade poética de um Pessoa ortônimo, que, personagem, proclama: “Se não dissermos as palavras todas, mesmo absurdamente, nunca diremos as necessárias” (IDEM, IBIDEM). Aqui, tem-se, em meio à discussão vulgarizada dos dois personagens, a sabedoria encontrada em sentença de pouco mais de uma linha. A frase justifica a falação de Pessoa, como consagra a prosa saramagueana, que é, consensualmente, a narrativa verborrágica: diz tudo para não deixar de dizer as palavras necessárias.
Neste trecho, flagra-se a conversação de dois poetas – sendo um projeção ficcional do outro – além do eco da voz do narrador que pode significar intromissão do que Bakhtin chamaria de “última instância autoral” (2006, p. 369), que é uma voz poderosa situada além dos limites formais do romance, entre o autor e a recepção no processo de validação da obra de arte.
Em Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin, perscrutando a formação do gênero romanesco, afirma que o “diálogo dos mortos” é momento decisivo “no qual homens e ideias, separados por séculos, se chocam na superfície do diálogo” (2010, p. 127). Nesta ficção duplicada, acrescenta-se que, no limen dialógico, encontram-se não somente “homens e ideias separados por séculos”, mas também personagens emprestados, poetas reais ou imaginários e figuras históricas desautorizadas pelo nível de aterrissagem – outra expressão bakhtiniana, aparecida em Cultura popular na Idade Média e no Renascimento – que essa narrativa alcança.
No clima de “profundo utopismo popular” (BAKHTIN, 2008, p. 20), a silenciosa musa clássica Lídia, com quem Ricardo Reis liricamente enlaçava as mãos, transforma-se em figura genuinamente popular, mulher que se desloca com muita irreverência da posição de ninfa inspiradora para a de companheira amorosa do poeta. Lídia cria cenas e condições dialógicas possibilitadas somente por sua aproximação erótica, e o faz com a naturalidade de qualquer personagem folhetinesca:
[...] um hóspede de meia idade sorri, bem-disposto, e atrás dele, se não nos enganam os olhos, está uma mulher também a rir, mulher é ela, sem dúvida, mas nem sempre os olhos vêem o que deveriam, pois esta parece criada, e custa-nos acreditar que o seja mesmo e de condição, ou então estão a subverter-se perigosamente as relações e posições sociais, caso muito para temer repete-se, porém há ocasiões, e se é verdade que na ocasião se faz o ladrão, também se pode fazer a revolução, como esta de ter ousado Lídia assomar à janela por trás de Ricardo Reis e com ele rir igualitariamente do espetáculo que a ambos divertia. São momentos fugazes da idade de ouro, nascem súbito, morrem logo, por isso levou tão pouco tempo a cansar-se a felicidade (SARAMAGO, 2010, p. 55).
           
Lídia faz a revolução no sentido de que mantém, ao longo de toda a narração, uma postura ativa, que “subverte perigosamente as relações e posições sociais”, pois não se esgueira diante do iminente ativismo político. Mais que isso, Lídia revoluciona a tipologia da personagem quando, mesmo podendo “rir igualitariamente do espetáculo”, opta por redimensionar a musa neoclássica pela ação:
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o (PESSOA, 1986, p. 190)

            A Lídia romanceada recusa-se a ouvir e ver o rio correr. Querendo “trocar beijos e abraços e carícias”, o faz. Com um amor convulso, enlaça as mãos às de Reis e alça-se como o outro contraponto, ao lado de Fernando Pessoa, basilar na ambivalência ética que busca renovar a capacidade responsiva do heterônimo frente à vida.
            Essa conjuntura polifônica em que um todo de vozes se mescla tanto no âmbito ideológico como formal – gerando essa confusão discursiva ininterrupta que é a prosa saramagueana – não surge sem razão na literatura das últimas décadas. No esteio do pensamento bakhtiniano a respeito da trajetória literária que culminou na composição do romance, arrisca-se a dizer que o novo romance histórico é a reverberação máxima desse gênero que, como nenhum outro, trouxe a outridade para o mais alto grau de discussão estética.
            Ainda em Problemas da Poética de Dostoiévski, Mikhail Bakhtin encontra na sátira menipeia o principal embrião do romance moderno. “Aqui se forma um novo enfoque da palavra como matéria literária, característico de toda a linha dialógica de evolução da prosa literária” (BAKHTIN, 2010, p. 135). Englobando “elementos da utopia social”, “contrastes agudos”, “declarações inoportunas” (IDEM, p. 134), a menipeia foi alicerce poderoso na representação, a um só tempo, do inferno e da vida comum. Nesse sentido, criou condições para que se instaurassem os “diálogos dos mortos” e a literatura das “últimas questões” convertidas em fatos corriqueiros. São justamente os dois fenômenos representativos que configuram o romance de Saramago.
Fazendo-se brevíssimo percurso pelos modos de narrar apresentados pela literatura, percebe-se, com Auerbach (1994), que desde as narrativas bíblicas existia a representação realista. Cunhando o termo realismo moderno, o crítico húngaro apresenta o modo de narrar que faz do presente, história, ou seja, que eleva as trivialidades da vida comum à condição de motes narrativos tão importantes quanto fatos históricos tidos como grandiosos. Essa inserção da banalidade no literário refletirá, um século mais tarde, em uma narrativa lusitana em que sequer a forma literária escapou à prosificação da vida comum.
Possivelmente, o grande salto da representação realista do romance de Saramago e de outros romances contemporâneos portugueses seja a consumação de um processo literário de mimetização que leva aos últimos limites a polifonia alcançada anteriormente por um Cervantes, Rabelais ou Dostoiévski. Com o escritor português, o discurso polifônico se transforma em problemática máxima do romance e a autoconsciência faz com que o dialogismo salte a cada linha.
Segundo Carlos Reis, há uma espécie de “rearticulação da narrativa e das suas categorias fundamentais (...) uma espécie de desagregação do romance” (2005, p. 246) que é exatamente o que se vê em uma obra fragmentária como essa. Contudo, embora as categorias fundamentais desse gênero, como o narrador, sejam absolutamente transformadas em uma “dispersão discursiva”, o romance, seja ele de que período for, não perde a “correspondência entre obra literária e realidade que ela imita” (WATT, 2010, p. 11). Sendo assim, em um contexto histórico em que urge a polifonia na vida, a literatura fatalmente precisava de uma forma que trouxesse essa polifonia para o discurso prosaico, para assim, poder estar em sintonia com a realidade e transcendê-la.
“Nós não somos nada, porventura nascerá para nós o dia em que todos seremos alguma coisa quem isto agora disse não se sabe, é um pressentimento” (SARAMAGO, 2010, pp. 384-385). A arte é o pressentimento de que, pelo menos no instante do enlevamento artístico, todos podem ser “alguma coisa”. Ser no sentido de existir plenamente a ponto de cingir o nada prosaico a que a vida humana está condicionada.
O personagem Ricardo Reis não desiste da inação e opta pela morte por não mais conseguir contemplar o espetáculo do mundo. As Lídias permanecem vivas compondo a literatura que é responsiva à inércia conformista da vida comum. De um romance que deixa ressoar vozes múltiplas que consumam o anseio polifônico, faça-se ecoar a fala de um narrador que conhece o poder de sua palavra: “e ainda há quem duvide de que a arte possa melhorar os homens” (IDEM, p. 95).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1994
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
______. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira. 6. ed. Brasília/São Paulo: Universidade de Brasília; Hucitec, 2008.
______. Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
PESSOA, Fernando. Obra Poética. (Org. de Maria Aliete Galhoz). 9. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
REIS, Carlos. História crítica da literatura portuguesa. Do neo-realismo ao post-modernismo. Lisboa: Verbo, 2005. Vol. 9.
SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. José Saramago entre a história e a ficção: uma saga de portugueses. Lisboa: Dom Quixote, 1989.
WATT, Ian. A ascenção do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.



TODAS AS ALTERIDADES DE MARIA...
Ana Cristina Almeida Vilela
Universidade de Brasília (UnB)
ana.cris.vilela@gmail.com

Primeiro dia de ensaio. Tento me distanciar de mim para, em mim, ver Maria, em O Visitante, de Hilda Hilst. Primeiro, tento ver Maria além do que ela mesma pode ver em si, sua singularidade. Por que Maria é tão seca, tão sentida? Que dor ela sente por não poder gerar, ter um filho em seus braços? Tento ler a alteridade de Maria, filha da bela e falsa Ana. Maria além de Maria. Mas há também Maria em mim, que a interpreto, que a imagino. Preciso me afastar de mim e de Maria, ser outro para ver a própria alteridade de Maria em mim e a mim mesma esculpindo Maria.
Sou leitora-criadora de Maria e passo a ser leitora-criadora de mim mesma enquanto Maria. Sou responsável por sua cocriação, por Maria diante de mim e diante da plateia. Meu diretor cria também e pode ver a mim em Maria; Maria em mim; nós duas; nós uma. Preciso distanciar-me dessa mulher que não gera, tentar ver sua dor, seu ódio de Ana... Por que, Maria? Quem é você? E quem sou eu agora, com tantas respostas que me veem de você?
Quem sou eu em você, Maria? Nós duas. Também me afasto de nós para nos vermos. Minha alteridade construindo Maria e a mim mesma em Maria. Imagino sua vida, crio, mas eu estou presente, sou eu diante de você e de mim. Não trago em mim empatia completa por sua dor, por sua paralisia no tempo, por suas mentiras de autossalvação. Não posso, Maria. Ou seríamos uma. Precisamos ser duas. Precisamos ser três pessoas inteiras em uma. Eu, você, você-e-eu, tudo em mim recriado e, ao mesmo tempo, tudo diante de mim, desse meu eu distanciado.
O diretor me olha, atento. Constrói-me a mim; reescreve Maria; vê-me além de mim; vê Maria além de Maria; vê a mim coconstruindo Maria além de mim coconstruindo Maria.
As outras personagens – Ana, Meia Verdade, o Homem, os leitores dos poemas – me veem, nos veem: a mim, Ana Cristina, e a mim construindo Maria. E com quais olhos todos nos veem? Com os olhos reais, de seres humanos-fato, ou com olhos de personagens, já com os olhos de Ana, de Meia Verdade?
Quantas alteridades tenho? Quantas alteridades Maria tem? Quantas alteridades eu e Maria juntas temos? Cada um nos concede uma alteridade?
Penso que queria ler todas as repostas em cada uma das cabeças à minha frente, essa responsividade do outro diante de mim, esse ato-pensamento que deve – ao menos devia – ser responsável. Mas... já seria um ato estético? Ainda não somos arte, nós ali, ensaiando a arte. Mas sou arte para meus coautores-colegas-de-cena? Observam-me... Mas já sou arte?
Penso no dia da apresentação. Maria acabada por mim, inacabada em si mesma e em mim, diante da plateia cocriadora. Preciso do outro para ser. Preciso do outro para existir. Preciso do outro para ser arte.
A arte tem alteridade? Todos nós, juntos no palco, formando um todo-arte, como uma tela que se move, um quadro, existe aí alteridade? Cada par de olhos ali presente coescreve a cena, coescreve cada ato, obtém respostas, nos projeta na qualidade de arte, mas esse olhar nos concede, enquanto arte que somos, alteridade?
Agora, se esse olhar observa atentamente Maria, a mim e Maria em mim, isso concederia alteridade a cada uma de nós: eu, Maria, eu-Maria? Ou apenas por estarmos no palco, o ser-imaginário, o ser-ator e o ser-Ana, perdemos nossa alteridade e viramos quadro na parede, página de livro inacabada, dialógica, polissêmica?


VIVÊNCIA: O APRENDIZADO DO OLHAR
Andréia Patrícia Barros
Ivone Leal Lopes

“Andando pelas ruas
Eu vejo algo mais do que arranha-céus
É a fome e a miséria
Dos verdadeiros filhos de Deus
Vejo almas presas chorando em meio a dor
Dor de espírito clamando por amor
Anjos das ruas
Anjos que não podem voar
Pra fugir do abandono
E um futuro poder encontrar
Anjos das ruas
Anjos que não podem sonhar
Pois a calçada é um berço
Onde não sabem se vão acordar
Às vezes se esquecem que são seres humanos
Com um coração sedento pra amar
Vendendo seus corpos por poucos trocados
Sem medo da morte o relento é seu lar
Choros, rangidos, almas pra salvar”.
Rosa  de Saron

Este trabalho tem como objetivo fazer uma reflexão sobre como a vivência influência na hora da produção de textos, com um diferencial estético, através do olhar extraposto - um novo olhar diante da sociedade, da vida, do mundo e, nos torna capazes de ver o que os olhos da maioria não veem - uma nova forma de aprender.
Iremos analisar trechos de redações produzidas por alguns participantes do projeto “Entreletras: aprendendo e ensinando a ler e a escrever o mundo a partir da atitude ética e estética no mundo” coordenado pela professora Rosa Brasil, da Universidade Federal do Pará. O projeto iniciou suas atividades em 2010 e já tem resultados positivos. A ação se dá basicamente por meio de vivências temáticas em espaços urbanos da capital Belém/PA. Depois de registrarem o local, por meio de fotografias, os participantes devem escrever um texto suscitado pela sensibilidade e pelas impressões que a experiência lhes proporcionou. A meta é promover o despertar do olhar estético e do agir ético.

Coletamos o corpus em uma das últimas vivência do projeto que aconteceu no largo da igreja das Mercês (foto). No entanto, antes de partimos para a análise dos dados, faz-se necessária a leitura de algumas teorias sobre o que é vivência  e extraposição numa perspectiva bakhtiniana.
 

Nesse sentido, Irene Machado (2005, p.143) ao dissertar sobre a noção de acabamento chama a atenção para a vivência como extraposição:
É impossível ao homem construir valores para si unicamente a partir de si. O valor é o centro de acabamento da estética porque exprime significados que são construídos na unidade da cultura humana em que estão também as vivências. O estético - todo acabado – nasce da extraposição.

Entendemos que a vivência não faz apenas com que o ser humano observe o mundo a sua volta, mas também atende a uma necessidade profunda da alma: colocar-se no lugar do outro (pessoa, coisa, objeto). Bakhtin (1997, p.80) nos chama atenção:
Perceber esteticamente o corpo significa vivenciar os estados interiores do corpo e da alma a partir de uma expressividade exterior. Podemos formulá-lo assim: o valor estético se realiza quando o contemplador se aloja dentro do objeto contemplado, vivencia a vida do objeto de seu interior e quando, no limite, contemplante e  contemplado coincidem.

Percebemos que o valor estético mencionado por Bakhtin está bastante marcado na hora da produção das redações, antecedidas pelas vivências, ou extraposições, no Largo das Mercês. Surpreendemo-nos ao presenciarmos vários mendigos ao entorno do largo, até mesmo nas escadarias e dentro da própria igreja, onde um morador de rua dormia sendo desprezado pelos fiéis e visitantes. Essas cenas foram pontos de partida para a maioria dos textos que apresentaram um diferencial, mais precisamente estético, resultado do processo de aprendizagem do olhar. 

Alguns trechos produzidos pelos participantes como resultado da vivência.

1. “Há um céu nublado, há pingos de chuva nas nuvens e as Mercês a entoar sinos. Sinos de vozes que se propagam no silêncio e na multidão de pessoas que passam para admirar a estonteante construção da igreja que abriga imagens santificadas e imagens humanizadas. O metafórico grito surdo que é visto através do bordado físico e esquecido na existência da exclusão não é sentido, não é ouvido por quem passa por lá.” ( Auricélia Silva)

2. “Nas ruas e nas escadarias das igrejas do centro está a maior de todas as imoralidades humanas, expressa na forma de mendigos, os grandes escravos da esmola, seja pelo comodismo e costume de pedir, ou pela necessidade repentina. Um perfeito símbolo de nosso tempo e desta cidade. Vivemos em um sistema que nega comida e condena o ser humano por não ter um teto, um endereço certo e ainda nos faz pensar que a situação desses moradores de rua é um fator natural das coisas, fazendo com que essas pessoas sejam vistas como sombras e, alheias a qualquer um de nós.” (Ivone Lopes)

 3. “A minha escolha foi abrir meus braços para acolher meus próprios horrores. Afinal, resolvi me indagar: como poderia passar indiferente a um alguém que esqueceu ser gente? Será que isso aconteceu quando ninguém mais a olhou como tal? Ou melhor, será que de tanto os outros a olharem como animal ela acreditou?” (Alessandra Vasconcelos)

4. “Passamos por eles todos os dias, em alguns casos insipientes, com um olhar abjeto, o que de certa maneira tornou-se prosaico. Percebemos o quanto não os enxergarmos no “corre-corre” do dia-a-dia, pois nossas ocupações nos privam disso, da contemplação ou reconhecimento desse ser como pessoa - igual a nós.” (Lidiane Santos)

 5. “Há um conflito entre igreja e mendigos? Ou será que um é o complemento do outro? Só sei que ambos pedem, necessitam pedir para sobreviver. Esta relação é tão bela quanto curiosa, igreja e mendigos desenvolvendo a mesma atividade, vivem em constante cordialidade, aparentemente não há disputa pelo espaço. Sem valor, sem importância, essas pessoas e o prédio da igreja são encontrados aos pedaços. A impressão é que a dignidade de ambos ficou presa ao passado, ou até mesmo é que nunca tiveram dignidade, de forma que as circunstâncias da vida talvez os tenham impedido de tê-la.” (João Paulo Cordeiro)

 6. “Os homens que passam, sequer sabem seus nomes, nada sabem sobre eles. Desconhecem sua história, ignoram sua essência. Ignoram que, por trás do rosto assustador, do corpo cheio de marcas e da ameaça que exala de cada poro, existe um homem que pensa, sente, ama. Aqueles que ficam não são só perigo e maldade, mas são feitos de coração e sangue, são feitos de vida.
    Talvez até mais do que aqueles que passam...” (Amanda Rodrigues)

Ao analisarmos a postura do produtor de cada trecho com o uso de recursos linguísticos, como adjetivos – estes sendo essencialmente positivo – atentando para a originalidade e versatilidade com que se trabalha a palavra, constatamos que através do vivenciar se estabelece o olhar extraposto, o da contemplação. Novos caminhos estão sendo abertos através da vivência, por exemplo: muitas pessoas estão sendo questionadas sobre o seu papel na sociedade, o seu envolvimento com esta, e sua visão de mundo, tornando-se mais críticos. É o que ratifica Carbonell (2010, p. 114):
Sabemos que o olhar é inquieto e inquiridor, que o olhar pensa, que é a visão feita interrogação. O olhar requer uma intencionalidade e precisa ser educado para enfrentar a epopéia visual do nosso cotidiano. Sob essa perspectiva, a educação do olhar torna-se indispensável à sobrevivência, pois atua como uma forma de humanização e de cultivo, um dispositivo para a cidadania. A estética, em sua origem, liga o sensível à imagem. Hoje, na civilização de visualidade, a imagem surge como um vigoroso potencializador da experiência estética.

O diferencial de um trecho e outro é o que cada ser contemplador traz dentro de si, é também de suma importância sua experiência de vida, sua sensibilidade, seus valores, o agir ético sobre o mundo juntamente com o olhar estético. A “receita” para a produção de um bom texto escrito dá-se do princípio de que é imprescindível vivenciar os fatos. É preciso haver envolvimento do sujeito como objeto da escrita, pois é assim que o olhar modifica a palavra. Cada trecho possui uma maneira, toda singular, de se expressar, e imprime o que foi presenciado, apesar de todos terem contato com o mesmo evento.
O aprendizado do olhar é a forma de alterar a perspectiva que se tem do mundo e das coisas, uma vez que, mudando-se o olhar, muda-se o modo de aprender. 
A verdadeira viagem do descobrimento
não consiste em buscar novas paisagens,
 mas novos olhares.
  Marcel Proust

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MACHADO, Irene. Os gêneros e o corpo do acabamento estético. In BRAIT, Beth. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2 ed. rev., Campinas (SP): Editora da UNICAMP, 2005.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
ALVARES, Sonia Carbonell. Educação estética para jovens e adultos: a beleza no ensinar e no aprender. São Paulo: Cortez, 2010.
BARTES, Roland. A câmara clara nota sobre a fotografia; tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 


A comunidade que (se) enuncia
Antonio Francisco de Andrade Júnior (Faculdade de Educação, UFRJ)

            Em Para uma filosofia do ato responsável, Mikhail Bakhtin propõe-nos uma ressignificação da noção de “contemplador” que parece ser o ponto de partida para as discussões sobre a atividade estética proposto por este I EEBA. Ao analisar a obra lírica de Pushkin, Bakhtin (2010a, p. 131-132) avalia que tanto o contexto valorativo do “autor objetivado” – figura que se projeta no enunciado: o eu lírico, neste caso – quanto o da “heroína” a quem está endereçada a poesia são “envoltos pelo contexto estético unificante e que afirma os valores, do autor-artista e contemplador, o qual se acha colocado fora da arquitetônica da visão de mundo da obra (diversamente do autor-herói, que é membro desta arquitetônica)”. É justamente a partir deste lugar exotópico do autor/contemplador que se torna possível, segundo Bakhtin (Idem, p. 132), a “afirmação e enformação da matéria da empatia na arquitetônica unificante da visão”, isto é, a convergência de centros de valor diferentes resultantes da “relativa autonomia dos heróis”, discutida pelo autor em seu livro sobre Dostoiévski, no qual se elogia o ato de criar, ao passo que se recusa a positividade do conceito de invenção: “não se inventa uma imagem artística, seja ela qual for, pois ela também tem a sua lógica artística, as suas leis” (BAKHTIN, 2010b, p. 73-74). No texto bakhtiniano, lê-se ainda: “Após escolher o herói e o dominante da sua representação, o autor já está ligado à lógica interna do que escolheu, a qual ele deve revelar em sua representação” (Idem, p. 74).
            Nesse sentido, podemos dizer que a teoria bakhtiniana implica uma reflexão profunda sobre a relação entre subjetividade e alteridade, colocadas, dentro da razão dialógica que estrutura seu pensamento, como termos equipolentes que, embora se mantenham inacabados, nunca chegam a configurar um bloco homogêneo. Pelo contrário, tal perspectiva teórica destaca, com frequência, a tensão e a polifonia das vozes, de modo que o discurso só possa ser analisado aí a partir de sua heterogeneidade constitutiva. Isso, por sua vez, requer atenção à problemática da comunidade, figura que pode potencialmente ocupar o lugar da representação na imagem artística. Esse(s) outro(s), o ser-em-comum, a alteridade entendida como comunidade, passa a ser assim, ao mesmo tempo, produtor e produto (criador e criatura) do enunciado estético. Muitos aspectos da análise da obra de Dostoiévski apontam para uma concepção dialógica da comunidade, ainda que Bakhtin não usasse tal expressão. A nosso ver, o próprio foco atribuído pelo estudioso à “total dialogação de todos os elementos da construção” (Idem, p. 73), no contexto do romance polifônico, confirma a formação de uma concepção enunciativa intersubjetiva em que coletivo e individual, público e privado são inseparáveis. Em Problemas da poética de Dostoiévski, chega-se a afirmar que “o discurso sobre o mundo se funde com o discurso confessional sobre si mesmo. A verdade sobre o mundo (...) é inseparável da verdade do indivíduo” (Idem, p. 87). Com isso, Bakhtin assinala a oscilação entre a vivência pessoal e o pensamento ideológico, categorias que realizam um intercâmbio recíproco de características no plano literário. E ao demonstrar a “fusão da palavra do herói sobre si mesmo com sua palavra ideológica sobre o mundo”, ratifica o valor semântico da “autoenunciação” como “a capacidade interna de resistência a qualquer acabamento externo” (Idem, p. 88).
            Isso nos faz pensar que não seria equivocado avaliar a ambivalência sintática do verbo “enunciar”, explorada já no título deste ensaio, como um intento produtivo de adentrar a compreensão dos mecanismos da linguagem em Bakhtin. É possível entender o sentido complexo desse ato seja por meio de sua construção ativa (enuncia), seja pela sua forma passiva (se enuncia/é enunciada). Dessa forma, buscamos um viés de reflexão em que, dentro dos gêneros literários, a comunidade – vista por Bakhtin (2010a, p. 142) como o mundo ou a esfera social de “quem é outro para mim” – possa constituir não só um conceito que se supõe inteligível para o sujeito, mas também um “tom emotivo-volitivo”, isto é, uma dimensão valorativa diferente daquela que permeia a voz subjetiva. Queremos refletir assim sobre o entre-lugar do discurso que ao tratar de comunicar uma espécie de pertencimento à comunidade – ou de relação do sujeito com ela – se dá conta de sua abertura problemática ao mundo; experiência que excede as fronteiras do dizer, choque com a palavra do outro que não se reduz a sua palavra, que enuncia ao mesmo tempo em que é enunciada.[6]
            Outro aspecto que comprova esse duplo valor do enunciado, no pensamento bakhtiniano, é o fato de os gêneros do discurso serem concebidos nele como entidades sociointeracionais simultaneamente normativas e abertas à criação. Não à toa, para Bakhtin (2003, p. 285), apenas o profundo domínio da estrutura composicional do gênero permite ao sujeito empregá-lo livremente dentro do seu “projeto de discurso”. Veja-se a seguinte afirmação: “Os gêneros do discurso, comparados às formas da língua, são bem mais mutáveis, flexíveis e plásticos; entretanto, para o indivíduo falante eles têm significado normativo, não são criados por ele mas dados a ele. Por isso um enunciado singular, a despeito de toda a sua individualidade e do caráter criativo, de forma alguma pode ser considerado uma combinação absolutamente livre de formas da língua” (Ibidem). Novamente aí Bakhtin relativiza a noção de liberdade, o que corrobora a visão foucaultiana de entendimento do discurso como um dispositivo dúplice de coerção e produção da subjetividade.
            É importante destacar, entretanto, que tal duplicidade do conceito de gênero, desdobrada em outros pontos da teoria bakhtiniana, reserva um valor político-performativo humanizador para a enunciação, sobretudo no plano da escrita literária, em oposição ao movimento de “coisificação do homem, das relações humanas e de todos os valores humanos no capitalismo” (BAKHTIN, 2010b, p. 71). Na esteira dessa colocação, Bakhtin investiga o processo de constituição da autoria no romance moderno a fim de desvendar o princípio estruturante do texto dostoievskiano, que, primeiramente, ausculta as ideias presentes na vida social, para em seguida reelaborá-las no discurso literário, que embora as retenha como imagens monológicas (“ideias-protótipo”), logo as faz interagir com outras, polifonicamente. Dentro do “campo de visão” do autor/contemplador, seleciona-se e transmuta-se a matéria viva, o que problematiza, na narrativa, tanto a verdade externa da ideologia quanto a verdade interna psicológica. Note-se assim que as noções de interioridade e exterioridade se imbricam. O espaço da comunidade, onde o sujeito é ora incluído, ora confinado pelo discurso alheio, torna-se, ao mesmo tempo, o lugar da negatividade (“o mundo de quem é outro para mim”) que expurga a voz do autor-artista, como condição mesmo para a produção do seu discurso. A ancoragem valorativa do outro na ordem do enunciado funciona como pulsão de morte, para associarmos uma categoria freudiana, ou como potência subliminar de dissolução da subjetividade, que se vê imiscuída à comunidade e ao mesmo tempo dela separada. Por isso em Para uma filosofia do ato responsável, Bakhtin (2010a, p. 143) mostra a importância de buscarmos continuamente um posicionamento como sujeitos da enunciação, através, é claro, de uma atitude responsiva face à alteridade. Percebe-se aí outra duplicidade importante: apesar de a arquitetônica em que o eu se diferencia do outro ser algo dado pela lógica do discurso, é algo também “por-ser-realizado”, haja vista o caráter antinatural que configura a orientação subjetiva em meio à força negativa do existir-evento. Isso significa que a atribuição do discurso a um eu determinado representa, ao fim e ao cabo, a conquista de um lugar.
Essa reflexão de Bakhtin problematiza a própria formação da subjetividade no discurso por entender que o autor/contemplador (sujeito da enunciação) localiza-se “por princípio fora dessa arquitetônica” (Idem, p. 140) onde estão situados não só os outros (as segundas pessoas da armação dialógica) mas também o seu duplo: a primeira pessoa, o centro da dêixis – conforme a ótica de Émile Benveniste –, o sujeito do enunciado.[7] Isso sinaliza-nos ainda caminhos de compreensão da noção bakhtiniana de exotopia, a partir da qual se verifica produtivamente a singularização do “eu-que-afirmo” frente ao(s) outro(s), sem deixar de pôr em xeque as ideias de subjetividade e comunidade, através mesmo da problemática do distanciamento (necessário) do contemplador em relação à outridade, assim como da cisão do espaço comum em singularidades responsivas, capazes de abalar a construção do todo no mesmo ato em que almeja erigi-lo: “a contemplação é a efetiva exotopia ativa do contemplador com relação ao objeto da contemplação. A singularidade de um ser humano contemplada esteticamente não coincide, por princípio, com a minha singularidade”; “do interior da arquitetônica estética não há saída para o mundo do sujeito do ato, porque esse se encontra fora do campo da visão estética objetivada” (Idem, p. 140-141). É nesse sentido que ao discutir a autoria (“a consciência do criador”) no romance polifônico, Bakhtin (2010b, p. 77) afirma que a aproximação entre as vozes do diálogo fazem ecoar o caráter inacabado tanto do eu como do outro: “Ela [a consciência do criador] sente ao seu lado e diante de si as consciências equipolentes dos outros, tão infinitas e inconclusas quanto ela mesma”. Como se vê, todo esse movimento reflexivo da obra bakhtiniana questiona, a um só tempo, a noção de comunidade – entendida como um todo monológico – e a pretensão de completude do sujeito.
***
Tendo em vista a argumentação prévia a respeito das tensões entre subjetividade, comunidade e discurso no pensamento de Bakhtin, gostaríamos agora de resgatar resumidamente uma discussão seminal sobre o ensino de língua e literatura no Brasil, realizada por Lígia Chiappini e Haquira Osakabe, e registrada, desde os anos oitenta, pela célebre coletânea de estudos O texto na sala (org. João Wanderley Geraldi). A proposta de Chiappini, no artigo “Gramática e literatura: desencontros e esperanças”, é a de que a contribuição da literatura para o ensino da língua seja a exposição do aluno a uma experiência criativa com a palavra e com a imaginação, acompanhada, sob ângulo de uma pedagogia politicamente engajada, pela possibilidade de experimentação discente de uma prática não alienada da linguagem. Dessa forma, Chiappini (In: GERALDI, 2006, p. 21) assinala a importância de se assumir, na escola, um conceito mais democrático de literatura, entendendo-a como “Qualquer texto, mesmo não consagrado, com intenção literária, visível num trabalho da linguagem e da imaginação, ou simplesmente esse trabalho enquanto tal”. Tal ponto de vista indicia a vontade de substituição da ênfase sobre o ensino redutor de tópicos da história da literatura, tradicional na educação básica, pela efetiva atividade de leitura e interpretação de textos literários, paralelamente ao estímulo a se compreender a sala de aula de língua e literatura como um espaço de produção criativa da linguagem verbal.
Já Osakabe, em “Ensino de gramático e ensino de literatura”, chama a atenção para o perigo representado pelo intuito de relativização do campo literário que dá a tônica ao texto de Chiappini. Para o pesquisador, o desejo de que o ensino de literatura passe “a ser o vivenciamento da obra literária enquanto experiência transformadora” (Idem, p. 28) não deveria excluir o desenvolvimento de uma escuta acurada e sensível da tradição, entendendo o sentido formativo da atividade leitora em lugar da aceitação abrupta de toda e qualquer produção como literária. É preciso, de acordo com ele, ter dimensão do valor de ruptura ou da potencialidade estética inaugural que um gesto poético pode ou não produzir no contexto da tradição. Esse cuidado de Osakabe tem por objetivo evitar que a literatura seja confundida demagogicamente com retóricas clicherizadas, de certo modo facilitadoras da recepção estética por não provocarem a crítica, o juízo de gosto, o incômodo e o deslocamento subjetivo em seus leitores. Além disso, funciona como um questionamento, face ao elogio da produção criativa indiscriminada, da maneira que vem sendo concebida a noção de sujeito na contemporaneidade. De nossa parte, estamos mais inclinados a concordar com a perspectiva de Osakabe, além de visualizarmos possíveis comparações entre sua análise e determinados pontos do pensamento bakhtiniano, visto que para ambos a experiência do ato estético só se confirma na medida em que propicie a vivência efetiva da instabilidade do sujeito, em contraponto ao movimento de estereotipização das identidades.
Deslocando o núcleo dessa discussão para o contexto da nossa pesquisa atual a respeito do letramento literário na formação de professores de língua estrangeira (LE), apresentaremos adiante alguns excertos de textos produzidos em 2011 por licenciandos de Letras Português-Espanhol de uma universidade pública do Estado do Rio de Janeiro. Estes dados sinalizam uma preocupação que deu origem ao presente texto: a de que nem o vivenciamento da obra literária enquanto trabalho criativo com a linguagem, nem a problematização da comunidade ou a do sujeito – esta última, de longo trajeto no campo literário – sejam aspectos que chamem a atenção aos estudantes de graduação no momento em que são interrogados a propósito da contribuição da literatura para sua formação inicial como docentes de LE. Leiam-se a seguir algumas respostas: “[A literatura] proporciona, ao graduando, um conhecimento multiplo e abrangente. O faz reflexionar e descubrir novas formas de ver o que o cerca” (Bianca, 11º período); “Os estudos literários são importantes para a formação do professor de L.E pela oportunidade que oferece a literatura de um maior conhecimento cultural, um conhecimento sobre o mundo. Além disso, a questão gramatical e estrutural também é importante; principalmente se o futuro professor busca obras literárias da sua L.E de formação” (Vanessa, 5º período); “Na minha opinião, os estudos literários contribuem muito, ou de maneira positiva, para a formação do professor de língua estrangeira. Tal opinião é baseada na defesa de que aprender uma língua é muito mais do que conhecer a estrutura da mesma, mas também ter acesso à cultura dos países que tem tal língua como oficial. O professor ensinará não só a gramática da língua, mas a história, fazendo com que seus alunos conheçam e aprendam a respeitar outras culturas” (Rafaela, 5º período), “(...) o aluno de língua estrangeira aprende, dentre outras coisas, a se adaptar a algo diferente (no caso, uma outra cultura) e a tomar gosto por um outro tipo de leitura” (Frederico, 6º período), “(...) [a literatura] nos faz quebrar (ou confirmar) paradigmas, estereótipos, e aceitar as diferenças ou lidar melhor com elas” (Daniele, 4º período).[8] Tais discursos projetam preponderantemente uma apreensão simplificadora da ideia de outridade, como se a cultura do outro, representada por comunidades linguísticas e literárias estrangeiras, pudesse ser abarcada na sua inteireza como um conteúdo didático. A literatura, desse modo, serviria como uma estratégia de resolução de conflitos hipotéticos. A propósito disso, precisamos estar atentos ao equívoco que está por detrás dessa maneira de se conceber o papel da literatura na formação do professor de LE, como se ela fosse uma forma de “substituir” experiências diretas com o estrangeiro, como bem mostrou Silvia Cárcamo (2007, p. 29).
Esses dizeres ignoram a plurivocidade de sentidos da linguagem nos gêneros literários, silenciam os dilemas da subjetividade e reduzem a questão da comunidade, e do outro de uma maneira geral, sem compreender de que forma sujeito e alteridade estão imbricados e se problematizam mutuamente. Além disso, a própria questão da estrangeiridade, mote fundamental da análise bakhtiniana da poesia de Pushkin, evento que metaforiza aí a separação entre eu e outro, bem como a necessária exotopia do sujeito da enunciação, não chega a ser enfocada pelo discurso dos futuros professores. Talvez isso seja um sinal de alerta ao fato de que, para muitos, a experiência literária estrangeira que vem sendo vivenciada na universidade não é a do questionamento e da dúvida, valores estes que não deixam de estar relacionados, para Bakhtin (2010a, p. 103), à noção de verdade (pravda) que advém da experiência irrepetível do “ato responsável”. De certa maneira, percebe-se nesses enunciados a força tipificadora que a simplificação do discurso em torno do literário, do cultural e do histórico vem produzindo em nosso cenário acadêmico. A vontade de enunciar dá lugar a um ser enunciado, como é de se esperar que ocorra em toda e qualquer atividade discursiva; entretanto aqui talvez a falta de um contato mais íntimo com a literatura, que cede lugar à má interpretação da produção teórico-crítica sobre o literário (note-se nos fragmentos acima certa tendência a se confundir a literatura com o domínio institucional dos “estudos literários”), vem tornando mais aguda a potência apassivadora (e apaziguadora) do discurso, cujo reflexo nesses casos é a busca de “soluções mágicas” para os problemas linguísticos e interculturais através do conhecimento literário. É importante lembrar, para concluir, que, em Bakhtin, mesmo “o amor ao outro” não é capaz de suspender a diferença: traço constitutivo da própria discursividade (Idem, p. 104). É preciso despertar, portanto, no aluno-leitor universitário, futuro professor de línguas e literaturas, a sensibilidade para o efeito dialógico e tensivo, ao mesmo tempo singular e comunitário, que o ato estético de enunciação pode provocar.           

Referências
ARFUCH, L. O espaço autobiográfico. Rio de Janeiro: Eduerj, 2010.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
----. Para uma filosofia do ato responsável. São Paulo: Pedro & João, 2010a.
----. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010b.
BLANCHOT, M. La comunidad inconfesable. Madrid: Arena Libros, 2002.
CÁRCAMO, S. La literatura en la formación y en la práctica del profesor. Anuario Brasileño de Estudios Hispánicos, p. 25-31, 2007.
GERALDI, J. W. (org.) O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2006.


Filosofia cínica e estética: ferramentas articuladoras da responsividade literária e princípios crítico-polifônicos em Mikhail Bakhtin
Autor: Augusto Rodrigues da Silva Junior
(Prof. Adjunto de Literatura Brasileira – TEL/UnB)




Nenhum enunciado pode ser o primeiro ou o último.
(Mikhail Bakhtin)

Mikhail Bakhtin era um contemplador. Está entre os maiores pensadores do discurso no Século XX, foi o tipo do pesquisador incansável, que sempre se debruçou sobre a relação entre o ser humano e a criação artística e, principalmente, um grande leitor de romances. Tudo isso, articulado a partir do seu método de crítica polifônica, provocadora do diálogo entre os elementos estético e ético em uma mesma dinâmica interpretativa. Capaz de articular o literário e o filosófico no mesmo horizonte de observação, ele sempre teve uma preocupação com o par comunicativo eu-outro.
Conforme apreendeu de Dostoiévski, organizou um sistema crítico que reconhecia [...] a consciência pensante do homem e o campo dialógico do ser dessa consciência, em toda sua profundidade e especificidade [...] (BAKHTIN, 2008, p. 340) como o principio polifônico de compreensão do mundo. Sua maior lição: embora todo gênero tenha seu campo de predominância e amplie círculos já existentes e insubstituíveis, a crítica deve ser responsável a ponto de valorizar o locus de cada gênero e propor o inacabamento – mesmo diante de discursos monológicos.
De certo modo, respondendo a Sócrates, que pregava a expressão conhece-te a ti mesmo, ele a transforma e a atualiza na modernidade: conhece o outro e assim conhecerás a ti mesmo.
Esta polifonia da/na crítica é a capacidade de responder aos discursos e gêneros e, ao mesmo tempo, responder-se em diversos momentos nas re-elaborações internas no conjunto de um percurso diegético durante toda a vida: “Um traço distintivo da carreira de Bakhtin como pensador é que ele jamais cessou de perseguir diferentes respostas para o mesmo conjunto de questões” (CLARK; HOLQUIST, 2004, p. 89). O eterno retorno compõe esta visada. De uma perspectiva nietzscheana é possível afirmar que há rastos carnavalizados e ecos responsivos que habitam sua maiêutica. Esta postura sempre estabeleceu como critério de análise as reverberações e a humanização possibilitada pelo ato de fala:
Eu vivo em um mundo de palavras do outro. E toda a minha vida é uma orientação nesse mundo; é a reação às palavras do outro (uma reação infinitamente diversificada), a começar pela assimilação delas (no processo de domínio inicial do discurso) e terminando na assimilação de riquezas da cultura humana (expressas em palavras ou em outros materiais semióticos) (BAKHTIN, 2003, p. 379).

Orem bem, se todo ato é responsivo; logo, a superação do método socrático de pensamento facultou-lhe o entendimento dos movimentos internos do seu percurso e de suas posturas analíticas: 1) diante de autores expressivos: Luciano, Rabelais, Cervantes, Goethe, Dostoiévski, dentre outros; 2) diante de temas de sua época: formalismo, estruturalismo, freudismo, totalitarismo etc.; toda sua vida foi realmente uma orientação para a palavra do outro. Seu interesse pelo romance é a maior prova disso, pois este gênero é aquele que mais se realiza com a palavra da alteridade.
Com efeito, este sistema socrático, e não apenas método, propõe a respondibilidade como organizadora do pensamento. O pensamento, por sua vez, sempre é responsivo: “A palavra do outro coloca diante do indivíduo a tarefa especial de compreendê-la (essa tarefa não existe em relação à minha própria palavra ou existe em sentido outro.)” (BAKHTIN, 2003, p. 379). A partir do encadeamento, toda pergunta pressupõe a resposta-outra. Por sua vez, a própria pergunta abriga alguma resposta/discussão anterior. Ambas contém sua força responsiva no conjunto de ideias e de imagens. Mas o elenkhos de Bakhtin, ao pressupor a importância do outro, faz com que a verdade não esteja exatamente naquele que pergunta, mas naquele que dialoga em situação polifônica. Dialogar é compreender. Neste sentido, amplia-se a polifonia e percebe-se a comunhão com uma visão carnavalizada de mundo, capaz de “[...] desfamiliarizar com o estado das coisas, para historicizar aquilo que era tido como imutável e eterno e relativizar clamores de verdade por meio da ‘paródia alegre da razão oficial’” (GARDINER, 2010, p. 232).
Se nos Diálogos Socráticos [de Platão] está presente o eu personificado, condutor e articulador de uma verdade [possível monologismo dialogal?], no pensamento bakhtiniano isto consuma-se em um processo de aterrissagem, cujo cerne é a valorização de cada ponto de vista e de cada autonomia discursiva, ideológica, literária – todas elas em interação heteroglóssica. Desta discussão advém, justamente, a convergência entre filosofia e estética, cujas bases são a carnavalização e a polifonia. Em artigo intitulado “Mikhail Bakhtin e a cultura grega antiga”, J. Nuto, na mesma linha de Gardiner, articulam estes pressupostos da seguinte maneira:
[...] No período ático, o sério-cômico manifesta-se no drama satírico e em um gênero completamente não-poético (no sentido clássico): o diálogo socrático – supostamente mais carnavalesco no discurso oral de Sócrates que na recriação literária de Platão.
Tanto no drama satírico como no diálogo socrático, Bakhtin encontra alguns elementos que contribuem para uma visão romanesca do mundo [...] (NUTO, 2009, p. 83).

Partindo destas vozes sobre a carnavalização, em Bakhtin, amplia-se o conceito de crítica polifônica. Ainda, em sentido histórico, a filosofia cínica romana permite entender como o pensador russo, ao fazer uma revisão de poética histórica das linhas do romance, também organiza sua postura crítica. Conjugar a carnavalização e a polifonia em uma mesma trama responsiva, permite ainda apreender melhor seu interesse etno-filosófico pelo romance. Afinal, neste gênero, a coexistência de questões simples e profundas no mesmo plano, a nova ideia que surge no discurso vivo coletado no instante mesmo de seu acontecimento, a voz popular e a consonância/dissonância estética enformam uma sensibilidade crítica:
Bakhtin tem a sensibilidade aguçadíssima para captar em cada palavra a existência de uma segunda voz, o que o leva, em um plano mais amplo e mais profundo, a perceber em cada obra de arte literária elementos de estilização, de ironia, de paródia, elementos esses que ele sintetiza no discurso do outro (BEZERRA, 2002, p. XI).

Essa percepção do outro e de si mesmo como o outro de outro foi fortemente problematizada pela corrente filosófica cínica desde sua origem. Em linhas gerais, o cinismo grego foi aprofundado e transformado pelos romanos. Segundo alguns estudos (MERQUIOR, 1972; 1982; BEZERRA, 1989; GOULET-CAZÉ, 2007;) essa corrente filosófica foi uma ramificação original e influente da tradição dos diálogos orais, voltados para a educação, procura da verdade e antagonismo aos sofistas. Tem-se a seguinte genealogia para fins de organização histórica: Sócrates, Antístenes, Diógenes, Crates, Menipo, Luciano, dentre outros. (Para alguns, Odisseu seria a proto-figura cínica por excelência).
As controvérsias, não discutidas aqui por absoluta limitação espacial, relacionam-se com o fato de postular-se ao estoicismo uma filiação socrática por meio do cinismo. Para alguns teóricos, apontados acima, esse caminho é incerto para definir o intercurso romano desta corrente e sua possível força romanesca de base. O mais viável, pela conjunção de temas, material deixado e afinidades satíricas, seria um estudo à parte, no âmago do pensamento bakhtiniano, da presença do estoicismo em sua visão cristã e as reverberações da perspectiva cínica em sua diegese. Trata-se de discutir a inserção do conceito de refleks – traduzido como “presença”, em Estética da criação verbal –, para discutir a “existência atualizada, à mão, à vista, disponível no aqui e agora” (BEZERRA, 2003, p. XI).
Lançado no tempo, este aqui e agora é sua maior chave de interpretação do romance e principal ferramenta articuladora de uma responsividade do/no discurso. E este aqui e agora, enquanto princípio de crítica polifônica, permite a polêmica (vide primeiro capítulo de Problemas da poética de Dostoiévski), o inacabamento em sua atividade responsiva interna (vide “Adendos” de Problemas da poética de Dostoiévski), a carnavalização, foco da análise social-antropológica (vide Cultura popular na Idade Média e no Renascimento) e a responsividade – marca distintiva da sua atividade diegética durante toda sua vida:
Chamo sentidos às respostas a perguntas. Aquilo que não responde a nenhuma pergunta não tem sentido para nós. [...] A índole responsiva do sentido. O sentido sempre responde a certas perguntas. Aquilo que a nada responde se afigura sem sentido para nós, afastado do diálogo. [...] (BAKHTIN, ECV, 2003, p. 381).

Retirando a força decadente-trágica (vide A origem da Tragédia, de Nietzsche) e memorialística-biográfica do estilo platônico-socrático, o pensador russo aponta para a vertente literária do cinismo, esta máscara sorridente e destronante que, herdeira da comédia e da sátira, transforma-se por sua capacidade responsiva e de criação: “A menipéia se caracteriza por uma excepcional liberdade de invenção do enredo e filosófica” (BAKHTIN, 2002b, p. 115). A franqueza, a provocação e o despudor, se tinham o objetivo de chocar seus interlocutores e tirá-los de uma condição contemplativa e amena, era, também, um convite ao debate, a um posicionamento na arena discursiva do cotidiano. Esses traços convergem para a categoria carnavalesca de livre familiarização do homem com o mundo e que:
contribuiu para a destruição das distâncias épica e trágica e para a transposição de todo o representável para a zona do contato familiar, refletiu-se substancialmente na organização dos enredos e das situações de enredo, determinou a familiaridade específica da posição do autor em relação aos heróis (familiaridade impossível nos gêneros elevados), introduziu a lógica das mésalliances e das descidas profanadoras, exerceu poderosa influência transformadora sobre o próprio estilo verbal da literatura (BAKHTIN, 2002b, p. 124).

Esses elementos predominantes nos diálogos, em gestação na articulação biográfica-literária de Platão e os movimentos de autonomia discursiva em Luciano, de certa maneira estão amalgamadas nas sua análises literárias e discursivas. Esta ótica, por sua vez, profundamente marcada pelas reverberações filosóficas e sociais da sátira menipéia foram levadas ao extremo com a ascensão do romance na modernidade e fizeram dele um gênero consolidado nos últimos séculos. Bakhtin seria, neste caso, a possibilidade crítica desta tradição.
Em “Apontamentos de 1970-1971” é possível enxergar esta revisão do próprio pensamento e do próprio método crítico no seu conjunto de imagens autoconsciente que reverberam em sua obra:
A unidade de uma ideia em formação (em desenvolvimento). Daí certo inacabamento interior de muitos dos meus pensamentos. Todavia eu não pretendo transformar defeito em virtude: nos trabalhos há muito inacabamento externo, inacabamento não do próprio pensamento mas de suas expressão e exposição. Às vezes, é difícil separar um inacabamento de outro. [...] Minha paixão pelas variações e pela diversidade de termos aplicados a um fenômeno. Pluralidade de escorços. Aproximação com o distante sem indicação dos elos intermediários (BAKHTIN, 2003, p. 392).

Tudo isso permitiu a Bakhtin analisar zonas familiares, posicionamentos de autor, o autor e sua relação com os heróis, as marcas de aterrissagem, as transformações dos estilos verbais, a inserção das formas, dos ritos e dos espetáculos, a estilização de formas e gêneros escritos e verbais etc. Em seus exercícios de crítica polifônica, conseguiu analisar as aproximações entre o dialógico e o monológico, o sério e o riso, o ético e o estético, o realismo e a fantasia no universo ficcional. Por extensão, a autonomia do autor, a liberdade do personagem, a carnavalização como versão do mundo, a polifonia como ampliação estética do discurso colhido no cotidiano etc. Neste conjunto de visões, destaca-se a capacidade de repensar o próprio fazer específico: tem-se o nascimento da crítica polifônica, uma maiêutica autoconsciente de sua ancestralidade e sempre ávida pelas gerações e ideias vindouras.
O movimento interior da crítica polifônica é justamente este inacabamento. Essa força volitiva-responsiva no centro nervoso do exercício de análise literária-discursiva que conjuga pluralidade e variantes, a diversidade e elos responsivos – nem sempre trazendo a indicação explícita deles. O sistema polifônico de análise entende o sentido do discurso (do belo) como uma intensificação do ser e da verdade.
Bakhtin foi um contemplador: a voz é os seres em máximo de ser.
Se o romance foi o gênero capaz de estabelecer o inacabamento, gerar respostas cotidianas e autônomas frente ao poder axiológico e ao épico elevado, construir uma imagem do homem comum na história e, principalmente, sua natureza composicional que transcente a palavra, como crítico literário e grande leitor de romances, Bakhtin supera o princípio do maestro socrático na execução da análise literária e propõe uma visada analítica responsiva. Seu papel, neste sentido, dilui-se na própria festa das vozes e, de regente, torna-se, ele também, instrumento dialógico. Assim, sua atividade heterodiscursiva conduz a uma contemplação e audição do outro enquanto celebra a música discursiva das palavras. Na sua força polifônica, ele funde-se com a própria orquestra, com as vozes, com o belo estético e com a força ética de deixar que o outro fale: assim, a cortina do espetáculo do mundo, chamado vida, nunca é fechada e canções amigas são entoadas e ouvidas ininterruptamente...


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
______. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Annablume/Hucitec, 2002b.
______. Adendo 1; Adendo 2. In: Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 311-338.
______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BEZERRA, P. A. A gênese do romance na teoria de Mikhail Bakhtin. 141 f. Tese (Doutorado). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Letras. Rio de Janeiro, 1989.
______. Prefácio à segunda edição brasileira de Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
CLARK, K. & HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva,
2004.
GARDINER, Michael. O carnaval de Bakhtin: a utopia como crítica. In: RIBEIRO, Ana Paula G.; SACRAMENTO, Igor (Orgs.). Mikhail Bakhtin: linguagem, cultura e mídia. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
GOULET-CAZÉ, M.-O. Religião e os primeiros cínicos. In: GOULET-CAZÉ, M.-O.; BRANHAM, R. B. (Orgs.). Os cínicos: o movimento cínico na Antigüidade e o seu legado. Trad. Cecília Camargo Bartalotti. São Paulo: Edições Loyola, 2007.
NUTO, J. V. C. Mikhail Bakhtin e a cultura grega antiga. Revista Archai, v. 3, p. 81-86, 2009.


Temporalidade, contemplação e responsabilidade na mensagem fotográfica de imprensa.
TURATI, Carlos Alberto[9]
carlosturatti@yahoo.com.br


Desde a passagem para a segunda metade do século XX mais ou menos, a fotografia tem sido usada em escala de reprodução em massa nos veículos noticiosos brasileiros, principalmente pelas grandes empresas jornalísticas, comumente chamadas de Grande Imprensa. A partir de então, sendo produzida com base em determinadas técnicas e configurada por certa padronização de gênero (a notícia), a fotografia de imprensa não somente formou um estilo de gênero discursivo como também um modo de ler a mensagem fotográfica, constituindo o que Sousa (2002) chama de fotoliteracia.  
Nesta pequena reflexão traçamos alguns apontamentos sobre a mensagem fotográfica na imprensa e a posição axiológica de interlocução instaurada por uma fotoliteracia ou uma maneira cultural de ler a mensagem fotográfica construída historicamente na relação comunicativa entre imprensa e público.

***

Segundo o estudioso brasileiro, Boris kossoy, a imagem fotográfica é constituída por uma ambigüidade que a torna capaz de apresentar um registro determinado da realidade e ao mesmo tempo criar uma realidade. Por ser uma expressão plástica, tendo como princípio formal o enquadramento, a fotografia nunca pôde prescindir de sua dimensão estética e autoral. Enquanto registro de uma determinada cena, é também o registro de um ponto de vista sobre a mesma. Além disso, a ambigüidade também se dá em razão de que a fotografia, ao registrar microaspectos individuais e sociais, fixa a memória histórica ao mesmo tempo em que se presta ao uso ideológico.
A perpetuação da memória é, de uma forma geral, o denominador comum das imagens fotográficas: o espaço recortado, fragmentado, o tempo paralisado; uma fatia de vida (re)tirada de seu constante fluir e cristalizada em forma de imagem. Uma única fotografia e dois tempos: o tempo da criação, o da primeira realidade, instante único da tomada do registro no passado, num determinado lugar e época, quando ocorre a gênese da fotografia; e o tempo da representação, o da segunda realidade, onde o elo imagético, codificado formal e culturalmente, persiste em sua trajetória na longa duração. O efêmero e o perpétuo, portanto (kossoy, 2007, p. 133).

Essa característica da imagem fotográfica tem um efeito muito importante no que se refere ao ato contemplativo quando se trata da imagem como notícia: a imagem fotojornalística torna o fato passado – tempo da representação. Cotidianamente a notícia não só informa mas faz esquecer. A foto-notícia num só tempo satura a emoção sobre o acontecimento e absolve o espectador, o leitor da notícia. Que se pode fazer quanto ao passado?, “nem adianta chorar o leite derramado” diria a sabedoria popular. Assim, mais que qualquer outro signo cultural, a imagem fotográfica permite o consumo duplamente hedonista da informação factual. Ao passo que revela uma parcela do mundo, desvincula-a da responsabilidade pelo tempo presente, e muito mais o futuro. Se já foi dito que não há mais história, no fotojornalismo o presente é um efêmero que se dissolve na instantaneidade de uma imagem: tudo é história.
Se para os estudiosos da linguagem a objetividade fotográfica é compreendida há muito tempo como um construto, não se pode exigir que o seja como dado a priori na cultura de produção e consumo da imagem. Aliás, ocorre bem o contrário e sua determinação advém da tradição filosófica e científica na qual surgiu a fotografia, um ambiente extremamente determinado pelo positivismo lógico. Por outro lado, mesmo em estudos semióticos se pode encontrar determinações de uma concepção que defende a objetividade mecânica da imagem, instaurada por Bazin (1991) no seu ensaio dos anos 50 sobre a ontologia da imagem fotográfica.  Em Barthes (1990), por exemplo, a relação entre significado e significante na imagem fotográfica é antes de registro que de transformação, daí o caráter analógico, especular da fotografia. Sem entrar no mérito da questão, mas admitindo a força ideológica que a teoria especular tem na cultura de consumo da imagem fotográfica, podemos compreender com Barthes a revolução antropológica que ela representa na história do homem, o tipo de consciência que determina.
[...] a fotografia instaura, na verdade, não uma consciência do estar aqui do objeto (o que qualquer cópia poderia fazer), mas a consciência do ter estado aqui. Trata-se, pois, de uma nova categoria do espaço-tempo: local-imediata e temporal-anterior; na fotografia há uma conjunção ilógica entre o aqui e o antigamente. É, pois, ao nível dessa mensagem denotada, ou mensagem sem código, que se pode compreender plenamente a irrealidade real da fotografia; sua irrealidade é a irrealidade do aqui, pois a fotografia nunca é vivida como uma ilusão, não é absolutamente uma presença, e é necessário aceitar o caráter mágico da imagem fotográfica; sua realidade é a de ter estado aqui, pois há, em toda fotografia, a evidência sempre estarrecedora do isto aconteceu assim: temos, então, precioso milagre, uma realidade da qual estamos protegidos (Barthes, 1990, p. 36, grifos do autor). 

Embora muitos estudiosos já tenham, desde os anos 90[10], anunciado a queda definitiva do mito da objetividade fotográfica por consequência das novas mídias digitais, parece que a fotografia de imprensa, protegida por códigos deontológicos e pela autopropaganda ética das empresas jornalísticas, tem sua relação com a verdade ainda pouco modificada. E isso se materializa nas formas, temas e estilos que mais do que resistência ao mundo digital, pode revelar uma estratégia discursiva-informacional. Se as evoluções tecnológicas digitais têm permitido a textualização da imagem no cotidiano, a Grande Imprensa, no bojo dos valores de que se serve e defende há muito tempo, ainda apresenta uma aura analógica da fotografia. Essa aura é reforçada tanto pela materialidade do suporte quanto pelos códigos deontológicos. O papel, enquanto suporte milenar do documento, da chancela, ainda parece manter a sombra da autenticação. Depois do ataque terrorista do 11 de setembro no Estados Unidos inúmeros leitores guardaram os jornais como forma de arquivar as imagens publicadas, embora todas estivessem disponíveis no meios digitais (Sousa,  2002). A credibilidade da imagem é chancelada pelo nome do jornal, pela sua tradição e identificação de seu público (Barthes, 1990). A deontologia é determinada pela interação com o leitor, as empresas jornalísticas mantêm frequentes pesquisas de opinião, assim, a ética da informação verbal e visual é construída na cultura de consumo que se afunila entre determinado jornal e seu público mais amplo e constante, o qual não apenas é informado, mas relativamente interfere na construção dos sentidos sobre a representação dos fatos.
Quanto à fotografia de imprensa, é possível dizer que o tipo de consciência de que fala Barthes, de certa forma, pelo menos quanto à condição da imagem como fato passado, parece ainda longe de se transformar definitivamente. Por outro lado, a fotoliteracia do leitor de imprensa visa a representação da verdade quando a efetividade informacional da imagem não extrapola a esfera de valores compartilhados na comunidade semiótica desse leitor. A verdade como direito universal, mas somente como verdade própria ou como opção. Além do mais, a expectativa pela representação implica um vivenciamento empático do acontecimento, porém no limite da contemplação. O vivenciamento participativo (Bakhtin, 2010) não precisa ser, necessariamente, efetivo. Pode-se virar as costas ao fato quando se confronta a realidade mediada, assim como no cinema uma emoção só vive o tempo diegético.  Aqui também uma ambiguidade da fotografia de imprensa: representa a realidade como verdade, mas uma verdade da qual se possa prescindir. 


Referências
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 4º Ed – São Paulo: Martins Fontes, 2003.
__________. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos-SP: Pedro e João Editores, 2010.
BARTHES, R. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
BAZIN, André. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.
KOSSOY, Boris. Fotografia e história. 2 ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
__________. Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007.
SOUSA, Jorge P. Fotojornalismo. Introdução à História, às Técnicas e à Linguagem da Fotografia na Imprensa. Porto, 2002.


De Branca de Neve à Preta da Noite.
Quando as crianças transcriam a vida na narrativa literária.
 Carmen Lúcia Vidal Pérez
 Universidade Federal Fluminense

Toda história começa com era uma vez e acaba felizes para sempre... é assim que Luisy (5 anos) inicia a atividade de contação de história. As crianças concordam com ela, já definiram como começará e acabará a história que será contada por todos. Luisy comanda a narração – pois foi dela a idéia de contar a história diferente, proposta imediatamente aceita pelo grupo.

E lá vamos nós...
Luisy inicia a história, as crianças a interrompem com sugestões para o enredo, algumas  são aceitas, outras não. Algumas pausas para discussões e opiniões divergentes. Momento coletivo de negociações sobre o conteúdo da história e a produção do texto final. A professora assiste e anota as decisões. Apaga, risca, não vai ser assim! Vai sim, quem está contando a história sou eu! Mas a história é de todo mundo! Então conta sozinha! É pra todo mundo contar junto!  Conflitos. Negociações. Tensões. Momentos e movimentos de criação. Após algumas confusões o texto final está pronto e agora Luisy vai lê-lo para a turma....

Mais confusão...
Não é assim que está escrito! Você mudou a história! Não falamos nada disso! Você está inventando! Mentira! Luisy altera algumas passagens interferindo no enredo negociado. Tem que ler como está escrito. Não pode mudar! A gente não falou isso! Contra vontade Luisy retoma a leitura do texto ‘corrigindo” os ‘desvios’. Por fim todos ficam satisfeitos com a história criada. Conta de novo sem mudar a história!

Conta outra vez...

PRETA DA NOITE

Era uma vez Preta da Noite. Um dia preta da noite estava passeando na floresta e viu um caçador de lobsomen. O caçador estava procurando o namorado dela, que era o Lobsomen da Lua Cheia. Ele pegou Preta da Noite e levou para uma casa bem longe dali. Lá Preta da Noite tinha que fazer tudo para o caçador e os anões malvados. Ela era escrava deles. Um dia ela fugiu e encontrou uma árvore bem grande e se escondeu. Enquanto isso o caçador voltou e não encontrou Preta da Noite e mandou os anões procurarem Preta da Noite na Floresta. O Lobsomen da Lua Cheia também estava preocupado com o sumiço de Preta da Noite. Ele também foi para a floresta procurar por ela. De repente os anões encontram o Lobsomen da Lua Cheia. Os anões partem para cima, mas o Lobsomen se defende. Os anões jogam uma rede, mas o Lobsomen se solta. O Lobsomen mata todos os anões. O caçador chega e da um tiro no lobsomen, que cai no chão, morto. O caçador vai embora feliz, pois matou o Lobsomen. Mas é lua cheia. E o lobsomen se transforma num príncipe preto. Preta da Noite encontra o príncipe preto e beija ele. Cuida dos machucados e ele fica bom. Os bichos da floresta fazem uma casa para o príncipe preto e Preta da Noite morarem. Mas quando a lua cheia vai embora o príncipe preto vira lobsomen outra vez, por isso ele se chama Lobsomen da Lua Cheia. Preta da Noite se casa com o Lobsomen da Lua cheia, que é também o príncipe preto. E sempre tem festa na casa deles da floresta quando é lua cheia. Eles viveram felizes para sempre.

Crianças narradoras...
 Imersas num mundo de histórias, as crianças escutam e produzem suas narrativas em suas brincadeiras e conversas. Pela narrativa de suas histórias, as crianças  (re)organizam discursivamente sua ação sobre (e com) o outro. A narrativa possibilita o exercício da imaginação e de diferentes usos da linguagem. Ao “brincar” com a realidade, a criança concebe, pela linguagem, outras realidades e experimenta outras perspectivas de compreensão do mundo e de si mesma, num movimento contínuo entre o eu e o outro.  Na narrativa infantil a palavra é verdadeira, no sentido bakthiniano do termo, ou seja, a palavra é sempre plural e, sendo plural é arena de luta e lócus de encontros. Encontro com o outro na narrativa, me desloco, me transformo – eu e o outro não somos o que éramos, estamos sendo. A narrativa potencializa o tornar-se, a criança não é, se torna e, se torna falando, contando suas histórias, narrando suas experiências. Na narrativa a criança experimenta novas possibilidades [muitas vezes fantásticas – como Preta da Noite] de viver e/ou transformar-se, de libertar-se de ser quem ela é, reconfigurando a vida – a sua vida. 

As histórias como mapas de mundos possíveis...
A história de Preta da Noite é um texto inscrito num movimento compartilhado de produção de um processo de  (re)existência que não sendo uma representação do real é o real de uma representação. A criança produz suas narrativas no contexto de sua vida cotidiana e nas interações que participa: escuta histórias, em que muitas vezes é ela mesma o personagem principal – seus atos, reações e características são ressaltados, enfatizados, elogiados, julgados, comparados, etc. A narrativa permite a organização da experiência (de si e do outro) numa sucessão de acontecimentos que situam personagens,  ações, num cenário determinado. A narrativa surge do e, provoca o, encontro com o outro. A criança narradora identifica-se (ou não) com personagens (humanos, não humanos e humanizados) e vive experiências de confronto, negociação, alianças e sedução do e com o outro (na tentativa de envolvê-lo nas histórias que conta), num movimento aprendente de vir a ser.

A luta com as palavras
Na palavra existe o outro. Minha palavra é sobre a palavra do outro e a questão do outro é a questão do sujeito, pois é impossível ser, sem ser na palavra do outro, o que nos conduz as complexas relações linguagem-subjetividade. Somos tecidos numa rede de relações onde se entrelaçam as várias vozes do auditório de nossas vidas, ou como nos lembra  Faraco, “nosso mundo interior é uma arena povoada de vozes sociais em permanente movimento” (1997, p.11). O sujeito constitui-se, nos processos interativos dos quais participa, nas relações intersubjetivas e no reconhecimento recíproco das consciências.     
O sentido que atribuímos ao que somos, está intimamente associado às histórias que contamos e a forma através da qual construímos nossas narrativas pessoais – nas quais somos ao mesmo tempo autores, narradores e personagens principais. Os textos que construímos para nossas vidas encontram seu significado tanto nas relações de intertextualidade com outros textos pessoais como nos contextos sociais pelos quais transitamos (Pérez, 2003:34).

 

A linguagem que marca as trajetórias individuais de sujeitos e sua subjetividade é também lócus de compreensão. Crianças narradoras lutam com as palavras  para compreender o mundo em que vivem. A concepção bakthiniana de linguagem nos coloca diante de um outro modo de compreender o mundo – vivo o mundo, sinto o mundo, sou (eu e outro) o mundo. 

Crianças narradoras que exercitam a exploração das contrapalavras das diferentes compreensões de si, do outro, do mundo e de si no mundo. Compreensões que engendram o excedente de visão: “a visão do outro nos vê como um todo com um fundo que não dominamos” (1992, p.5), que torna inacessível para o sujeito, experiência do outro em relação a ele próprio, mas que dialeticamente possibilita ao próprio sujeito produzir suas  contrapalavras - como fazem as crianças na  história Preta da Noite -  que  mobilizam desejos, sonhos e ações  potencializando as diferenças  de modo a impedir sua transformação em desigualdades
Na narrativa a linguagem está imersa numa intrincada rede de relações dialógicas, o  que nos permite conceber a realidade em permanente transformação. O acontecimento enunciativo é o lócus efetivo da produção narrativa, um espaço ampliado de formação  da subjetividade.

A narrativa como contemplação estética
Segundo Bakhtin a comunicação estética engloba três elementos fundamentais: a obra de arte (o texto), o criador e o contemplador.
O que caracteriza a comunicação estética é o fato de que ela é totalmente absorvida na criação de uma obra de arte e as suas contínuas recriações por meio da co-criação dos contempladores e não requer nenhum outro tipo de objetivação. Mas, desnecessário dizer, esta forma única de comunicação não existe isoladamente; ela participa do fluxo unitário da vida social, ela reflete a base econômica comum, e ela se envolve em interação e troca com outras formas de comunicação (1992. p.5).

Concebo apoiada em Bakhtin a narrativa infantil como uma forma de comunicação estética, porque no caso da história da Preta da Noite, emerge de uma situação extraverbal presente nas relações cotidianas das crianças.
Na poética, como na vida, o discurso verbal é um ‘cenário’ de um evento.[...] O discurso verbal é o esqueleto que só toma forma viva no processo da percepção criativa e, conseqüentemente, só no processo da comunicação social viva (1992, p.14).

Para Bakhtin, no mundo estético o autor tem a possibilidade de olhar para o herói como um sujeito situado temporal e existencialmente dentro da obra (no caso a história Preta da Noite). No cotidiano da vida – mundo ético - as crianças, não são personagens que possuem um autor. Sujeitos da linguagem, as crianças, no mundo da vida, produzem sentido para sua existência na interação com outros sujeitos. A narrativa é um evento discursivo que possibilita através da interação, a interlocução de fatores extraverbais ao enunciado. Apoiada em Bakhtin, compreendo as narrativas infantis como uma “oferta de contrapalavras”que emergem do diálogo autor-narrador-ouvinte em que as palavras povoam o contexto cotidiano da vida das crianças.
Para finalizar trago uma outra narrativa, a de  Harum, um menino que descobre  que todas as histórias vem do  grande Mar de Histórias e empreende uma fantástica aventura na busca das palavras, enfrentando as forças tenebrosas da escuridão e do silêncio.
E assim Iff, o Gênio da Água, contou a Harum sobre o Mar de Fios de Histórias, e embora o garoto estivesse se sentindo  fracassado e sem esperanças, a mágica daquele Mar começou a exercer um efeito sobre ele. Olhou para a água e reparou que ela era feita  de milhares e milhares e milhares de correntes diferentes, cada uma de uma cor diferente, que se entrelaçavam como uma tapeçaria líquida, de uma complexidade de tirar o fôlego; e Iff explicou que aqueles eram  os Fios de Histórias, e que cada fio colorido representava e continha uma única narrativa Em diferentes áreas do Oceano havia diferentes tipos de histórias, e como todas as histórias que já foram contadas e muitas que ainda estavam sendo inventadas podiam se encontrar aqui, o mar de Fios de Histórias era, na verdade, a maior biblioteca do universo. E como as histórias ficavam guardadas ali de forma fluida, elas conservavam a capacidade de mudar, de se transformar em novas versões de si mesmas, de se unirem a outras histórias e assim se ornarem novas histórias; de modo que, ao contrário de uma biblioteca de livros, o Mar de Fios de Histórias era muito mais do que um simples depósito de narrativas.
Não era um lugar morto, mas, sim cheio de vida.
Salman Rushdie

Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail (Voloshinov, V. N.). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999
__________________. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

FARACO, Carlos Alberto. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas. Editora da UNICAMP, 1997.

GERALDI, João Wanderley.  Leitura: uma oferta de contrapalavras. Conferência proferida no 13º Congresso de leitura do Brasil. UNICAMP – Campinas, São Paulo: 2001.
PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal. Professoras Alfabetizadoras.Historias Plurais, Praticas Singulares. Rio de Janeiro. DP&A Editora, 2003.
RUSHDIE, Salman.  Harum e o Mar de Histórias. São Paulo. Companhia das Letras, 2001.




Documentários Monológicos e Polifônicos
Cristiano José RODRIGUES[11]


           É fato que, apesar da marcante contribuição de Mikahil Bakthin para a área de literatura e linguagem, seus estudos jamais se referiram propriamente ao cinema. Autores como Robert Stam e Arthur Autran, procuram trazer as reflexões Bakthinianas para o universo das imagens em movimento, e assim essa apropriação ainda se mostra extremamente fértil e potente. Pensando nisso, procuro um paralelo entre as categorias do romance, traçadas por Bakthin, e seus possíveis correspondentes na produção de cinema documentário contemporâneo. Percebo que como no romance, podemos caracterizar algumas narrativas documentais como “monológicas” e outras como “polifônicas”.
          Essa percepção me ocorreu ao ver na mesma semana deste ano de 2011, dois filmes documentários de longa metragem, lançados no circuito comercial brasileiro. São eles: “Quebrando o Tabu” do diretor Fernando Grostein Andrade e “Família Braz: Dois Tempos”, dos diretores Arthur Fontes e Dorrit Harazin.
          O primeiro, procura traçar um histórico do combate ao consumo de drogas e defende a tese de que se houve um momento em que se declarou guerra às drogas, chegou o momento de se declarar a paz, e tratar o tema como de saúde pública e não de polícia. Para isso, recorre ao ex presidente Fernando Henrique Cardoso, como condutor da narrativa e elo entre as diversas entrevistas, em sua maioria com autoridades e celebridades, como Bill Clinton, Dráuzio Varella e o escritor Paulo Coelho.
          O segundo, propõe uma radiografia de uma classe social em ascensão no Brasil, através da volta dos diretores ao bairro de Brasilândia –periferia da cidade de São Paulo –  onde reencontram os personagens de um documentário feito ali mesmo, dez anos atrás, "A Família Braz".
          Segundo Paulo Bezerra (2005), à categoria de monológico, proposta por Bakthin, estão associados conceitos de autoritarismo e acabamento, elementos que podemos observar nas entrevistas e animações presentes na narrativa do filme “Quebrando o Tabu”. Apesar de extremamente diversificadas em termos de personagens (políticos, médicos, escritores e usuários ), as entrevistas são extremamente dirigidas e burocráticas, quase oficiais e todas procuram colaborar para justificar a tese defendida pelo filme. Além do formato oficial das entrevistas, que podemos observar no tipo de enquadramento (padrão telejornalístico), as opiniões ou vozes, são acabadas, conclusivas e de certa forma, autoritárias, pois não deixam espaço para o diálogo e diversidade de questões.
          Ainda segundo Bezerra (2005), à categoria bakthiniana de polifônico, estão associados conceitos de realidade em formação, inconclusibilidade, não acabamento, dialogismo e polifonia; exatamente o que podemos perceber na narrativa do filme “Família Braz: Dois Tempos”. Ao revisitar as personagens dez anos depois do primeiro encontro, os diretores procuram de forma fluida capturar nuances da mudança do padrão de vida da família. As entrevistas possuem enquadramentos mais abertos, deixando as personagens se locomoverem e há uma interação entre seus discursos e os espaços físicos e os deslocamentos. Vamos percebendo detalhes, não somente pela fala das personagens, mas pelas suas ações e interações, revelando um universo por vezes contraditório e cruel. Mais do que um discurso pronto, acabado, a narrativa apresenta uma “realidade em formação” aberta para diferentes entradas e percepções do expectador, que ao se colocar como agente ativo da narrativa, dialoga com a riqueza do universo apresentado na tela.
          Sem procurar traçar juízo de valor entre os diferentes formatos, cabe aqui observar que as categorias monológico e polifônico se justificam pelos objetivos dos filmes. Se no primeiro caso, “Quebrando o Tabu”, temos um filme tese, onde tudo corrobora para a justificativa de uma questão pronta, acabada, onde o expectador possui poucas entradas e se coloca numa posição mais passiva;  no segundo, “Família Braz: Dois Tempos”,  temos  um filme antítese, onde o universo das personagens é explorado em inúmeras possibilidades, inclusive contraditórias, abrindo para o expectador diversas entradas interpretativas e se posicionando ativamente diante da narrativa, constituindo-se como um expectador ativo, aberto e disponível para o diálogo.

Referências
Bezerra, Paulo.  In Brait, Beth . Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.
“Quebrando o Tabu” -  2011. diretor Fernando Grostein Andrade.
 “Família Braz: Dois Tempos” – 2011. diretores Arthur Fontes e Dorrit Harazin.




A concepção de linguagem em Bakhtin e suas contribuições para a Análise das Alterações de Linguagem nas Epilepsias
Danielle Patricia Algave
IEL/UNICAMP

            As alterações de linguagem podem ser decorrentes de quadros de epilepsia e ocorrer tanto no momento das crises – neste caso referidas como “afasias transitórias” - quanto em conseqüência das lesões cerebrais provocadas pela evolução da doença. Dentre as principais alterações identificadas destacamos as dificuldades para encontrar palavras (WFD – Word Finding Difficulties), a produção de parafasias lexicais e semânticas, dificuldades de leitura e escrita, além de alterações cognitivas, principalmente gnósicas (perceptivas), que se revelam por meio de alucinações visuais e/ou auditivas. Acreditamos que o estudo de tais fenômenos lingüístico-cognitivos pode contribuir para a compreensão de aspectos da organização semântico-lexical e, sobretudo, para esclarecer a respeito do papel dos lobos temporais no funcionamento da linguagem.
            Buscamos compreender o estatuto das alterações de linguagem nas epilepsias, tanto com relação aos aspectos do sistema formal da língua (produção de parafasias fonético/fonológicas, dificuldades de selecionar palavras, etc) como alterações pragmáticas e discursivas (em associação com outras alterações cognitivas – como memória, atenção, alucinações visuais ou auditivas) que possam acarretar atrasos na aquisição de linguagem, dificuldades de aprendizagem e, conseqüentemente, no desenvolvimento cognitivo, sobretudo na infância e na adolescência.
            Nossa fundamentação teórica está pautada na concepção de Sistema Funcional Complexo, de Luria (1973/1977), que considera o cérebro como um sistema dinâmico, plástico e como produto da evolução sócio-histórica e da experiência do indivíduo, nos postulados de Vygotsky (1984, 1987, 2004) sobre o conceito de desenvolvimento e mediação, nos conceitos bakhtinianos (BAKHTIN, 1995, 1997), com objetivo de melhor caracterizar os processos dialógicos e os enunciados dos sujeitos; e na Neurolingüística Discursiva (COUDRY, 1988, 1992, 2002) a qual assume a linguagem como trabalho e que se apresenta como a principal forma de relação dialógica, produzida em meio social (FRANCHI, 1977).
Tomamos, portanto, a perspectiva teórica na qual a linguagem se dá através das interações sociais e é constitutiva dos sujeitos. A linguagem está sempre inacabada e em movimento, susceptível de renovação pela dependência da compreensão que acontece no diálogo, onde se constitui a singularidade, pelo fato de a intersubjetividade ser anterior á subjetividade e de a relação entre interlocutores ser responsável pela construção de sujeitos produtores de sentidos (BAKHTIN, 1997).
Nessa perspectiva, o discurso não é considerado como um bloco uniforme, mas como um espaço marcado pela heterogeneidade, ou seja, diversas vozes vindas de outros discursos – o discurso de um interlocutor. De acordo com Bakhtin (1995, 1997) numa abordagem discursiva, só podemos nos constituir enquanto sujeitos ao tomarmos consciência de que não somos o outro. Cada sujeito só existe na relação com os seus interlocutores, ou seja, nas interações sociais. Esta consideração é de fundamental importância para nós e se constitui numa das razões pela qual optamos por uma metodologia discursiva. Nesse sentido, o sujeito traz em si todas as vozes que o antecederam.
Sobre isso, ainda podemos dizer que o sujeito e a linguagem são mutuamente constitutivos (COUDRY 1995, BAKHTIN, 1997; GERALDI, 1997) e estão ancorados nas condições de produção extralingüísticas. Desta forma, os sentidos construídos dentro das interlocuções vão sendo estabelecidos pelos indivíduos nas sucessivas interlocuções e decorrem do contato que cada um deles tem com diversos interlocutores.
Para Bakhtin (1997), a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados. Ela não existe fora de um contexto sócio-ideológico e sempre se destina a alguém, ao “outro”. Ao falar, o locutor considera o “outro” do diálogo: seu modo de ser, seu grau de informação, seus conhecimentos, opiniões, convicções, etc.
O sentido de um enunciado não está pré-definido no indivíduo e nem na palavra, mas é construído numa compreensão ativa e responsiva. É o efeito da interação entre o locutor e seu receptor, produzido por meio de signos linguísticos. A interação constitui, assim, o veículo principal na produção do sentido. Nesta concepção, o sentido se torna único, individual, não renovável e expressa a situação histórica no momento em que se dá a enunciação. Bakhtin (1997) ainda define o enunciado como a unidade real da comunicação verbal. Tais características do enunciado podem ser verificadas no trecho que se segue (BAKHTIN, 1997, p. 293-294):
“(...) A fala só existe, na realidade, na forma concreta dos enunciados de um indivíduo: do sujeito de um discurso-fala. O discurso se molda sempre à forma do enunciado que pertence a um sujeito falante e não pode existir fora dessa forma. (...) As fronteiras do enunciado concreto, compreendido como uma unidade da comunicação verbal, são determinadas pela alternância dos sujeitos falantes, ou seja, pela alternância dos locutores. Todo enunciado - desde a breve réplica (monolexemática) até o romance ou o tratado científico - comporta um começo absoluto e um fim absoluto: antes de seu início, há os enunciados dos outros, depois de seu fim, há os enunciados-respostas dos outros (ainda que seja como uma compreensão responsiva ativa do outro). O enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, estritamente delimitada pela alternância dos sujeitos falantes, e que termina por uma transferência da palavra ao outro, por algo como um mundo “dixi” percebido pelo ouvinte, como sinal de que o locutor terminou.”

            O enunciado deve ser compreendido como qualquer manifestação de comunicação, seja ela oral, gestual ou escrita. O diálogo, por sua vez, é tomado como a forma clássica da comunicação verbal, na qual se torna mais evidente a alternância dos sujeitos falantes. A situação dialógica, ou interlocução é, portanto, constitutiva dos enunciados nas interações verbais.
Qualquer enunciação propõe uma réplica, uma reação, e necessita de um acabamento com a finalidade de expressar a posição do locutor e produzir uma atitude responsiva, uma vez que o homem é tido como um ser de resposta e ao evento é impossível de ser efetivado senão participativamente (GERALDI, 2004). Dessa forma, o locutor sempre espera por uma atitude responsiva que irá lhe dizer sobre a compreensão de um enunciado (BAKHTIN, 1997). Segundo Bakhtin (1995), o acabamento é de certo modo
“a alternância dos sujeitos falantes vista do interior; essa alternância ocorre precisamente porque o locutor disse (ou escreveu) tudo o que queria dizer num preciso momento e em condições precisas”.

Ainda sobre o acabamento, Bakhtin (1995, p. 195) ressalta três fatores que são válidos para qualquer tipo de enunciado.
“A totalidade acabada do enunciado que proporciona a possibilidade de responder (compreender de modo responsivo) é determinada por três fatores indissociavelmente ligado no todo orgânico do enunciado – 1) o tratamento exaustivo do objeto do sentido; 2) o intuito o querer-dizer do interlocutor; 3) as formas típicas de estruturação do gênero do acabamento”

Para avaliar as alterações de linguagem, adotamos o segundo fator mencionado por Bakhtin que se refere ao querer-dizer. Percebemos que mesmo havendo alterações na linguagem que representem dificuldades para sujeitos acometidos pela epilepsia – principalmente quando nos referidos às dificuldades de encontrar palavras -, eles de alguma maneira tentam dizer aquilo que buscam. Nestes momentos, ao perceber o intuito discursivo de nosso interlocutor, nos antecipamos em oferecer um acabamento pra seu enunciado, a tentativa de ajudá-los a completar a sua idéia (NOVAES-PINTO, 1999).
Por fim, há um último conceito a explorar nas contribuições de Bakhtin para este trabalho, que diz respeito ao dialogismo. Para o autor, este conceito permeia todos os outros aqui explicitados e se constitui na alternância dos sujeitos falantes (BAKHTIN, 1997, p. 294):
“o diálogo, pó sua clareza e simplicidade, é a forma clássica de comunicação verbal”

Bakhtin (1995; 1997) discorre bastante sobre a interação verbal, a enunciação no plano intersubjetivo e a questão da constituição subjetiva embasada nas relações dialógicas. Esta concepção de sujeito o remete a uma indeterminação permanente, que se reconstitui de uma maneira diferente a cada interação verbal. Todas estas questões se tornam relevantes tanto para a investigação quanto para a análise do processo terapêutico de pacientes com alterações de linguagem e das interações que ocorrem nos diferentes círculos sociais (CAMARGO, 2000).

Bibliografia
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem, São Paulo: Editora Hucitec, 1995.
BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
CAMARGO, E. A. A. Concepções da deficiência mental por pais e profissionais e a constituição da subjetividade da pessoa deficiente. Tese de Doutorado. Instituto de Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Campinas, 2000 COUDRY, M. I. H. Diário de Narciso. Discurso e afasia: análise discursiva de interlocuções com afásicos. Tese de doutorado. Unicamp, Campinas, 1988.
COUDRY, M. I. H. Diário de Narciso: discurso e afasia. São Paulo. Martins Fontes. 1986/88, Campinas – SP: Unicamp/IEL, 1992.
COUDRY, M.I.H. “Linguagem e Afasia: uma abordagem discursiva da Neurolingüística”. IN: Cadernos de Estudos Lingüísticos, Campinas, (42): 99-129, Jan./Jun., IEL,Unicamp. 2002.
FRANCHI, C. "Linguagem- Atividade Constitutiva". In: Almanaque, 5. São Paulo: Brasiliense. 1977.
GERALDI, J. W. Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
GERALDI, J. W. O texto na sala de aula. 3. ed. São Paulo: Ática, 2004. 
LURIA, A. R. Fundamentos de Neuropsicologia. São Paulo: Ed.Cultrix. Morsan. 1973/1981
NOVAES-PINTO, R.C. A contribuição do estudo discursivo para uma análise crítica das categorias clínicas.  Tese de Doutorado não-publicada, Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, SP. 1999
VYGOTSKY, L. A formação social da mente. Ed Martins Fontes. São Paulo, 1984
VYGOTSKY, L. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987. 
VYGOTSKY, L. Psicologia pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, 2004


O produtor-contemplador e o contemplador-produtor ativos:
produção e re-produção – sempre vivências estéticas responsivas
Luciane de Paula[12]
David de Almeida Isidoro[13]

A arte não se limita à inspiração. Há todo um processo de organização e planejamento realizado pelo “eu” (autor-criador) para que ela se encontre finalizada[14] e, depois disso, reorganizada no ato de leitura pelo “outro” (público) para que faça sentido.
Durante o momento de produção de uma obra, o autor-criador[15]possui um projeto arquitetônico e, para cumpri-lo, utiliza alguns elementos sígnicos[16] formais, de conteúdo e de estilo (elementos composicionais do gênero), organizados de determinada maneira em sua obra (seu discurso), para construir um efeito de sentido determinado.
Além dos elementos artísticos condutores de dizeres (escolhidos pelo autor-criador no momento de produção de seu discurso), é necessário pensar nos meios pelos quais o discurso estético circula para alcançar seu público alvo, bem como na recepção desse discurso por um “outro” contemplador ativo e responsivo que, de certa forma, re-produz a obra estética de acordo com sua vivência, uma vez que o discurso é semiótico[17] e o discurso estético, representação da vida em arte[18].
Assim, o autor-criador pensa nos elementos que utilizará em sua produção estética considerando também o “outro” (personagens e leitor ideal) produzido em seu enunciado estético, na recepção de seu discurso por um “outro” “real” e responsivo (seu público leitor), bem como na veiculação de seu discurso, também realizada por “outros”, mediadores (professores, mídia etc).
Os elementos (forma, conteúdo, estilo) utilizados para compor a obra, de certa maneira, selecionam o interlocutor[19] do objeto artístico produzido, uma vez que sempre “eu” componho “meus” discursos para  um “outro”. Por isso, a escolha realizada pelo autor para a composição de sua obra de determinado material (léxico, cor, som, etc), de determinado tema (conteúdo), trabalhado de determinada maneira (forma) e com um determinado tom (estilo) se, por um lado, direciona seu discurso estético para um “outro” específico (que o responderá ao “consumi-lo”, na recepção do mesmo), por outro, já responde a algo/alguém (passado ou futuro), com o que ou quem dialoga como resposta. Logo, sob essa perspectiva, bakhtiniana, a produção é tão responsiva quanto a recepção, uma vez que o autor-criador predetermina (conscientemente ou não), a quem dirige seu discurso, a quem responde e com quem quer dialogar. A produção de sua obra, somada à sua veiculação, direciona a recepção do “outro” a quem se dirige a obra em si, ainda que, por mais planejada que seja, a obra fuja do controle do autor-criador por ser também autônoma, como a linguagem o é: representação representativa e representada – ativa e responsiva.
Além da responsabilidade pela produção de seu discurso, o autor-criador possui a responsabilidade acerca do efeito de sentido nele construído, ainda que a leitura do “outro” possa construir outras possibilidades de sentido. Parafraseando Bakhtin em seu texto “Arte e Responsabilidade” (2003)[20], é possível dizer que arte e vida se interpenetram[21], pois as duas (arte e vida) exercem influências uma sobre a outra e são capazes de modificar uma à outra. Assim, o autor é responsável, sem direito a álibi, por sua obra (arte) tanto quanto o é quem o veicula e o público (seu outro), que o lê e atribuiu sentido no ato da leitura – sendo, como denomina Barthes (2004), “co-autor do texto”. Seja como for, todo discurso (e isso inclui o discurso estético) nasce da vida tanto quanto responde a ela, sempre de maneira dialógica.
Segundo Petrilli (2010), ao pensar sobre o discurso literário,
“Bakhtin realiza, a partir da literatura, do ponto de vista da literatura, uma crítica anti-sistêmica que põe em questão toda forma de fechamento totalizante, mostrando que a literatura se compõe indissoluvelmente por materiais extra-literários, que a escritura literária reelabora e reorganiza, de outra perspectiva que lhe é própria, específica. (...). O texto literário é um texto responsivo, texto que pressupõe, como toda enunciação, uma compreensão responsiva; e aquilo a que responde é ao mundo da vida vivida, a vivência. Por isso, lê-lo e interpretá-lo significa compreender o tipo particular de seu engajamento, de sua resposta, de sua responsabilidade.” (p. 36).

Em outras palavras, podemos dizer, baseados nos textos do Círculo, que a completude do “eu” é obtida por meio do “outro”, pois esse “outro”, em sua posição exterior (sua visão extraposta, exotópica) ao “eu”, consegue visualizá-lo de maneira mais ampla e dar-lhe acabamento (estético, inclusive) e sentido. Assim também ocorre com os textos estéticos, que só adquirem sentido quando os vivenciamos, ou seja, no ato de leitura (esta, concebida da maneira mais ampla possível), na relação dialógica, que é, necessariamente, uma relação sujeito-sujeito, sujeito-enunciado e enunciado-enunciado. Nesse sentido, pode-se perguntar: quem/o que é o sujeito? Quem é representação simulada e representação viva? Se a vida só existe por intermédio da linguagem, somos todos semiose, representações representadas. Só adquirimos sentidos (assim mesmo: plurais) quando somos lidos/vividos por nossos outros, que nos despertam da morte sonhadora de nossas vidas encapsuladas. Sim, porque se a vida é poiésis, encontramo-nos mortos a maior parte do tempo, na cotidianidade ordinária (prosaica) que nos anestesia (n)a vida. A vivência estética é a experiência que, ao contrário, nos desperta porque nos incomoda, causa estranhamento, impulsiona-nos a agir e viver ao nos tirar de nosso estado hipnótico alienador compulsório. Alguns podem dizer e pensar que a vida é, então, instantes, ínfimos momentos. Perguntamos: será? Quem disse que não podemos fazer de nossas vidas poesia? Por que precisamos viver o estado racional do trabalho escravo, submetermos nossa mão-de-obra ao lucro capital? Como cantam Marisa Monte, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes (2010), “Vamos pra avenida, desfilar a vida, carnavalizar” (“Carnavália”, Tribalistas).
A vida pode (não, deve!) ser vivência estética. Poeiésis. E é responsabilidade de cada um de nós transformar a prosa ordinária e compulsória da vida em vida poética, poética vida. Viver. In-verter a lógica, carnavalizar. Deslogicizar, dialogar, humanizar.
Em outras palavras, se a vida é material poético, gênero primário que, elaborado (secundário), trans-forma-se em estética, por que não elaborarmos o cotidiano? Não será vivência poética ver o pôr-do-sol numa tarde de verão? Esperar a lua engravidar e parir as estrelas só para enfeitar o céu negro, madrugada adentro, que será? E ouvir barulho de chuva, gota de orvalho, cheiro de terra molhada, o que é? Depende. Se estivermos preocupados simplesmente em produzir mais um artigo “Qualis A” para nossos currículos, preocupados com o horário de funcionamento do banco e com as contas a pagar, tudo isso é prosaico, nem percebemos o espetáculo da vida à nossa volta, a desabrochar, pois ele nos passa batido no dia-a-dia porque estamos mortos em nossas vidas eletrônicas teleguiadas. Agora, se tivermos abertos e formos receptivos, ouviremos, ao longe, as badaladas dos sinos da igreja nos chamando a nos re-ligar, mesmo que, no escritório onde nos encontramos, imperem os gritos do chefe e os telefones irritantes a tocar. E produziremos nossa obra de arte: a vida, a maior experiência estética vivenciada cotidianamente por todos nós.
Por mais caótico que seja o mundo, em seu caos, o cosmo se instaura e o artista é aquele que sabe (porque se dá o direito de) auscultá-lo e se põe a transcrevê-lo esteticamente. O artista não é um gênio ou um sujeito superdotado inspirado no “nada”. Ao contrário. Ele é um sujeito ativo, engajado, responsivo e responsável. Ele é um homem como qualquer um de nós, com a diferença de que procura a poesia para contemplá-la, vivê-la e produzi-la mesmo nos locais e horários mais insuspeitos – geralmente, é ali que o melhor material poético se encontra porque a humanidade adora um caos: no horário de pico de uma sexta-feira de verão, na marginal Tietê, trancado no carro sem ar condicionado, em meio à fumaça dos carros, às chaminés e às sirenes das fábricas, às buzinas das motos, aos palavrões dos motoristas estressados e ao mau cheiro do rio que insistem em poluir, de lá, o contemplador-produtor, de repente, é pego de súbito por um cantar afinado, procura à sua volta e vê, pelo cantinho do retrovisor, algo a se mexer. Flagra um “Sabiá” (1968) cantarolando a vida naquela árvore que insiste em florescer mesmo naquela selva de pedras. Poiésis em plena prosa cotidiana. Claro que sempre há aquele sujeito cartesiano “Matador de Passarinho” (2007), que prefere apenas o cheiro de monóxido de carbono da fumaça preta das chaminés das fábricas e dos escapamentos dos carros. Esse, muitas vezes incapaz de localizar o sabiá, apenas o ouvirá e ainda ficará irritado pelo “barulho” estridente do tom (soprano) de seu canto. Seria ele reprodutor “Cérebro Eletrônico” (1969) programado apenas para o trabalho, sem qualquer sensibilidade ou sensação. “Capitão de Indústria” (1996) incompetente para a poesia, ele sustenta a prosa e é, muitas vezes, ovacionado socialmente por sua eficácia. A ópera ao adentrar os ouvidos, os corações e as mentes de uns, é poesia latente; em outros ouvidos, porém, é histeria trágica não catártica. Tudo depende de como se contempla e vivencia as experiências. “Diariamente” (1991) pode ser especial e o momento mais especial possível pode passar despercebido dependendo do sujeito contemplador. Nesse sentido é que produção e contemplação/recepção são dialógicas e responsivas, pois contemplar demanda produzir e re-produzir (não reprodução fordista!) tanto quanto produzir demanda contemplação. Mesmo que não haja sabiá, o contemplador-produtor vive a poiésis até no monóxido de carbono e constrói sua “Música Urbana” (1986) a partir disso, a fim de questionar, incomodar e inverter a ordem, seja por meio de um discurso estético ácido, irônico ou cômico, grotesco. Seja como for, contemplador e produtor são um em dois, dois em um: sujeitos ativos e responsivos. Representantes de cada um de nós, nossos nós.
Numa canção, por exemplo, é possível visualizarmos a interação eu-outro (referimo-nos aos diversos sujeitos envolvidos por esse e nesse gênero estético): um determinado ouvinte pode utilizar uma canção como seu discurso ao se projetar no enunciado da mesma por identificação com a história narrada pelo interlocutor e vivida pela personagem, tornando-se o “eu” da canção, seu herói. Da mesma maneira, ele também pode projetar um “outro” “real” no enunciado cancioneiro, por identificá-lo com alguma outra personagem. Não é raro acontecer de o cantor ser confundido com determinada personagem de alguma canção muito emblemática interpretada por ele – como não é rara a identificação de um ator com a personagem que interpreta – ainda que sejam diferentes. Da mesma maneira, não é raro ouvirmos que determinada canção é a música-símbolo de um sujeito ou que determinada canção remete a determinada situação vivida – e se a situação vivenciada for positiva, o sujeito apreciará a canção mesmo que seu acabamento estético não seja tão elaborado; em compensação, se a situação à qual a canção se vincula emocionalmente for negativa para o sujeito, ela (a canção) pode ter o melhor acabamento estético possível e ser aclamada por estudiosos, críticos, músicos e demais ouvintes, ela será execrada pelo sujeito com ela envolvido emocionalmente. Essas identificações e projeções ocorrem exatamente porque arte e vida dialogam e não é possível ser diferente (Ainda bem!).
Assim, interpretações são subjetivas porque o mundo, a vida, o homem e a linguagem são subjetivos. Produção e contemplação são atividades estéticas que possuem a mesma força porque pertencentes à mesma fonte: a consciência.
Ao oferecer determinada canção a um “outro”, este a receberá como se a canção falasse para ele ou sobre ele, sobre quem a ofereceu ou ainda sobre a relação entre ambos, mesmo o enunciado cantado tendo sido composto por um sujeito desconhecido, logo, im-possível se referir a eles. Isso ocorre porque a linguagem (especialmente no discurso estético) é semiose (representação) e a obra sempre parte da vida, bem como a responde, voltando-se a ela. Bakhtin/Voloshinov (1997) diz que
(...) a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor: ela é a função da pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos. (p. 112)

A responsividade engloba o sentido atribuído ao discurso (inclusive à obra estética) e sua re-utilização pelo eu-outro, de maneira dialógica, desde sua produção até sua recepção/contemplação. Bakhtin, em seu texto “Arte e Responsabilidade” (2003), fala sobre a necessária interpenetração da arte na vida e da vida na arte. O filósofo russo denomina “patética demais” a obra produzida de maneira reclusa, fora da “realidade” da vida (e essa é a sua crítica ao formalismo russo que trata a obra literária como imanente), pois, segundo ele, a arte reflete e refrata a vida (porque a representa) e a vida elabora a arte. Daí, segundo Bakhtin (2003), a importância de arte e vida arcarem com as responsabilidades de suas produções:
O poeta deve compreender que a sua poesia tem culpa pela prosa trivial da vida, e é bom que o homem da vida saiba que a sua falta de exigência e a falta de seriedade das suas questões vitais respondem pela esterilidade da arte. (p. 34)

Com essa citação, concluímos esta breve reflexão que tentou/tenta experimentar essa vivência estética aqui, na escritura acadêmica. Como as vivências estéticas são responsabilidade do homem que as vivencia, uma vez que a arte traz em si o reflexo da vida, a produção acadêmica também pode (e deve) se caracterizar como reflexiva e representativa e fazer isso é também responsabilidade nossa, da academia. Afinal, segundo Bakhtin (2003), “o individuo deve tornar-se inteiramente responsável” e, portanto, deve entender que, conforme afirma o filósofo russo, “arte e vida não são a mesma coisa”, mas precisam constituir-se em “algo singular” em cada um, na “unidade da responsabilidade” de cada um, em sua vivência ética e estética.

Bibliografia citada:
ANTUNES, A.; BROWN, C.; MONTE, M. “Carnavália”. Tribalistas. Rio de Janeiro: EMI, 2010.
BAKHTIN, M.M. (VOLOSHINOV) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.
BAKHTIN, M. M. (MEDVEDEV). El método formal en los estudios literarios. Madrid: Alianza, 1994.
BAKHTIN. M. M. (1920-1974). Estética da Criação Verbal. (Edição traduzida a partir do russo). São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BARTHES, R. “A morte do autor”. O rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
FARACO, C. A. “Autor e Autoria”. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin – Conceitos-Chave. São Paulo: Contexto: 2005.
GIL, G. “Cérebro Eletrônico”. Gilberto Gil. Rio de Janeiro: Marola, 1969.
HOLLANDA, C. B.; JOBIM, A. C. “Sabiá”. Chico Buarque – Não vai Passar. Vol. 4. Rio de Janeiro: Marola, 1968.
INICIAL, C. “Música Urbana”. Capital Inicial. Rio de Janeiro: Polygram, 1986.
LOPES, E.; LOPES, H. B. T. “O nascimento do formalismo: Bakhtin”. In: PAULA, L. de; STAFUZZA, G. (Orgs.). “Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável”. Volume 1. Série Bakhtin – Inclassificável. Campinas: Mercado de Letras, 2010.
MONTE, M. “Diariamente”. Mais. Rio de Janeiro: EMI, 1991.
PETRILLI, S. “Uma leitura inclassificável de uma escritura inclassificável: uma abordagem bakhtiniana da literatura”. Tradução de Adail Sobrail. In: PAULA, L. de; STAFUZZA, G. (Orgs.). “Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável”. Volume 1. Série Bakhtin – Inclassificável. Campinas: Mercado de Letras, 2010.
SKYLAB, R. “Matador de Passarinho”. Skylab II. Rio de Janeiro: MGB, 2007.
SUCESSO, P. “Capitão de Indústria”. 9 Luas. Rio de Janeiro: EMI, 1996.



Interação em múltiplas linguagens: responsividade, ética e estética
Edwiges Zaccur
edwigeszaccur@gmail.com
Universidade Federal Fluminense

Poderia começar esse texto ensaiando uma definição de interação verbal, que seria sempre muito limitada e simplificadora. Nem mesmo um conceito, por mais amplo que fosse, poderia traduzir em palavras o alcance da interação verbal que constitui,  segundo Bakhtin, “a realidade fundamental da língua”. Nesse sentido, quando muito, podemos enfatizar as circunstâncias em que uma interação acontece; os interlocutores que nela se implicam (no mínimo dois socialmente organizados ou, pelo menos, um interlocutor virtual); os efeitos que a interação produz; os atos responsivos ativos que gera; a ressonância que seguirá produzindo. Nesse sentido, mesmo o grito de um recém-nascido se lança em direção a outro. Sem a responsividade desse outro, como a vida que principia poderia realimentar sua atividade mental ou como encontraria nutrientes afetivos para desenvolver-se (cyrulnik, através da expressão, realimentar sua atividade mental? 
Sendo o humano um ser de resposta, o ato responsável já é uma resposta. E que dizer da interação em múltiplas linguagens, em que os interlocutores implicam na dimensão de responsividade-responsibilidade? Mais do que um jogo de palavras, esse binômio traduz o ato responsivo de quem não só responde ao outro, como de algum modo, também  emite uma resposta responsável. Nessa relação de alteridade em que o eu e o outro se constituem, é que se embasa a arquitetônica bakhtiniana. Como sublinha Geraldi, somos cada um com o outro na irrecusável continuidade da história. (Geraldi, 2004, 229)
Não por acaso, Bakhtin, além de questionar o objetivismo abstrato que absolutizava a língua como coisa em si mesma, apartada dos interlocutores respondentes e replicantes, também refutou a orientação do subjetivismo individualista que absolutizava o EU, com seus desejos e emoções, acionando a centelha subjetiva e individual da criação. E, sobretudo, se contrapôs aos mais exacerbados idealistas românticos que chegaram a rejeitar a faceta externa da expressão como “deformação da pureza do pensamento interior”(1989, 111). Para Bakhtin, ao contrário, não é a atividade mental que organiza a expressão, mas é expressão que organiza a atividade mental e a modela segundo uma orientação (1989, 112).
No entanto, ao considerar que a palavra falseia o que se passa no âmago da alma, o exacerbado idealismo individualista atirou no que viu e, mesmo tendo errado o alvo, acertou no que ainda não podia  ver: uma compreensão difusa de que a expressão oral ou escrita pode não ser suficiente, por si só, para dizer de  emoções e desejos que perpassam uma situação social imediata.
Eis que a invenção do cinema tornou possível expressar o indizível de situações sociais vividas em interação. Não por acaso, escolho o filme de Almodóvar, “Fale com ela”, para retomar bakhtiniamente o diálogo, considerando a impossibilidade de um álibi que nos proteja da relação vida-morte que atravessa o filme.  Em “Fale com ela”, os closes sublinham olhares, gestos e expressões fisionômicas, expressando o binômio responsividade-responsibilidade em múltiplas linguagens perpassadas de sentido ético. Acresce que o cineasta consegue ainda tornar apreensível uma aura estética que, nas interações cotidianas,  costuma ganhar visibilidade, quando um toque de paixão passa a  colorir o ato mais banal.
Logo às primeiras cenas do filme, o espectador é convidado à contemplação de um espetáculo de balé que, por sua vez, é visto de dentro do filme por dois personagens que ocupam poltronas vizinhas no teatro. Na condição de contemplador ativo e respondente, tanto Benigno como Marco se emocionam diante do balé em que duas mulheres se debatem, até que  responsivamente um homem as socorre, retirando da cena  objetos em que, aturdidas, esbarravam. Seriam sonâmbulas? Seriam dementes? Seriam cegas?  A resposta a essas perguntas  pouco  importa. Mais importante é o impacto da situação-limite que as bailarinas encenam, instigando o contemplador (na tela e fora dela) a experimentar vivências estéticas que acordam sua responsividade. Na platéia do teatro,  Benigno, emocionado, se comove ainda mais  ao ver a emoção boiando no olhar de um ainda desconhecido Marco. Esse excedente de visão de Benigno em relação a Marco se revela prenunciador de uma amizade que viria a se consolidar quando, ao se encontrarem num hospital cuidando de duas mulheres em coma, se tornam confidentes.
Inclusive, o instigante título do filme “Fale com ela” expressa o conselho dado pelo enfermeiro Benigno ao escritor Marco que, à cabeceira da amada, vivia uma situação aparentemente similar, mas tão diferente da que era experimentada por ele. Similar, pois o escritor acompanhava a  toureira Lydia em coma, enquanto o enfermeiro Benigno se ocupava, com extrema dedicação, da bailarina Alicia. No entanto, mesmo em face de situações sociais assemelhadas, suas interações eram muito distintas. Embora capaz de se expressar tão bem que ganhava a vida valendo-se das palavras, Marco emudecia diante do que a racionalidade levava seus olhos a ver apenas um corpo inerte, no umbral da morte. Benigno, ao contrário, movido pela compreensão que ia além do que chamamos de realidade objetiva, a partir do modo como compreendia a situação, conseguia ver uma vida que teimava em sobreviver (Von Foerster , 1996). Marco não conseguia elaborar aquela vivência que o impactava. Benigno  transformava tal vivência na experiência mais radical de sua vida. Não por acaso, repetidas vezes provocava o novo amigo com um conselho banhado em sua experiência: “Fale com ela”. 
A preposição ganha força nesse contexto em que suas conversas combinam com os interesses de Alicia: balé, cinema mudo, viagens, músicas. Nos dias de sua folga, é por ela que Benigno vai ao teatro, é por ela que vai ao cinema, é por ela que se mantém antenado com os programas culturais. Em sintonia com Benigno, a professora de balé também investia na conversação, mesmo sem esperar uma resposta imediata, apostando num horizonte de futuro que apenas ela e Benigno conseguiam vislumbrar, ao falarem com Alícia. Diriam os descrentes que Benigno monologava diante  da bailarina inerte. Mas quantas vozes ressoavam na sua, dialogizando-a?
Sua palavra é função de sua interlocutora privilegiada.  Nesse sentido, as enunciações de Benigno são sulcadas pela ressonância senão da voz, da presença de Alicia, desde o tempo em que, de sua janela contemplava siderado seus passos de dança na academia em frente à sua casa. Após o acidente que a deixou em coma, na condição de enfermeiro, ele se excede em cuidados dispensados à paciente: associa ao toque de quem cuida, a palavra derivada do mundo dos interesses dela, a música  que  ritmava os movimentos de sua dança, o aroma  dos óleos utilizados. Enfim ele cria com ela  e para ela uma ambiência de múltiplas linguagens encharcadas de  uma estranha sinergia: o que dela provém,  a ela retorna, numa espécie circuito comunicante.
Pode-se perguntar, se essa ênfase em falar com ela não inscreve a palavra num lugar hierarquicamente superior? Mas a palavra, como ensina Bakhtin, se faz acompanhar de acentos que sublinham as mais variadas oscilações das emoções presentes nas situações sociais. Como exemplo, Bakhtin recorre ao diálogo criado por Dostoievski no “Diário de um escritor” envolvendo  seis amigos bêbados que se valem da mesma palavra outra, ressignificada a cada fala, a cada  entoação expressiva ditada pelo contexto. Palavras  são, assim,  signos camaleônicos: palavras sussurram, palavras urram, palavras tocam, palavras repelem,  palavras adoçam, enfim,  revestem-se de novos sentidos como bem sabia Mario de Andrade ao conclamar em seu Prefácio Interessantíssimo: “versos não são para ser lidos com olhos mudos”.
As palavras, muito frequentemente, se fazem sublinhar e até contestar pela linguagem não verbal que as dialogiza. No filme, como na vida, tudo dialoga, recursiva e projetivamente. A  subjetividade de Benigno é intersubjetivamente alimentada ao longo do tempo em que contempla de sua janela os passos de dança de Alicia e platonicamente se apaixona, ou diante das cenas daquele balé que abre o filme. Eis que dentro filme a inserção do filme “O amante minguante”, não por acaso mudo, precipita os acontecimentos. Tendo como de costume assistido ao filme para contar o que viu à Alicia, Benigno percebe que o filme  mexera com seus sentimentos e desejos. Ao sentir-se “esquisito” e estranhar  o que sentia,  o que viu materializado na tela replica  o que sua mente, ainda confusa, desejava. Teria se aproveitado das circunstâncias para extravasar sua sexualidade reprimida? Seria uma tentativa desesperada de animar aquele corpo exangue? Seria um ato execrável ou patológico do enfermeiro? Seria a possibilidade de se doar radicalmente, inoculando o sêmen da vida em Alícia? Seria um gesto canhestro de responsividade-responsibilidade de quem tanto responde como se torna responsável? 
Há que explicar ou apenas compreender Benigno? Como contempladores ativos, podemos estabelecer qualquer juízo de valor. Trata-se de um crime contra a ética? De um caso de estupro num acesso de loucura? De um homem desprovido de razão? Mas o filme de Almodóvar não foca nenhum ato que evoque violência. Apenas insinua que algo aconteceu quando Benigno confidencia a um surpreendido Marco sua intenção de se casar com Alicia.
Voltemos à responsividade-responsibilidade também tão presente nas atitudes de Marco. Diante do espetáculo de balé, Marco chora; viajando por cenários,  escreve; tendo sofrido a dor de ser abandonado, pode se solidarizar com a mulher apaixonada que esconde sua fragilidade sob a máscara da toureira destemida. Compreendendo o sofrimento humano, Marco contempla com um excedente de visão tudo o que testemunha, do drama de Lydia, a toureira que sofre por amor; ao de Benigno, o enfermeiro apaixonado pelo objeto de seus cuidados, de permeio com o seu próprio.
Depois que Marco, sem esperança, parte em nova viagem, Lydia, a toureira convencionalmente cuidada, vem a falecer. Quanto a Benigno, uma sequência de efeitos se produz, a partir do momento em que foi constatada a gravidez de Alicia. Incriminado, processado e condenado  à prisão, ele se desespera pela ausência de notícias de Alícia. Ao sabê-lo preso, Marco se apressa em visitá-lo. Mas não o julga, apenas busca compreender o outro, compreendendo-se.
Sem se propor a dar uma última palavra sobre Benigno, o filme de Almodóvar provoca o diálogo, diante de situações sociais encharcadas de responsividade e responsibilidade, vividas interativamente na arte como na vida. Para realizar seu intento, o cineasta constrói a sintaxe do filme, incorporando cenas de balé, do filme mudo “O Amante minguante”, dos clips musicais entremeados aos flash-backs.  Mas o fio que intertextualmente  articula tudo, na sintaxe plural de diferentes linguagens, incide no binômio vida-morte.
Cada contemplador(a) pode se sensibilizar a entrar nos dramas daquelas personas  pela janela que mais  toque sua sensibilidade. O balé de abertura que anuncia cenas densas que virão; a música Cucurrucucu, paloma que, na voz dolente de Caetano Veloso, indicia o trágico fim da toureira Lydia; o filme O amante minguante que expressa o indizível e precipita acontecimentos; o último balé, antes  alvo da conversação que, nas cenas finais, projeta novo encontro -  nada que se apresenta na tela é gratuito.
O binômio morte-vida, que atravessa as cenas, também as reveste de um plurilinguismo de que é metáfora o clip Cucurrucucu, cantado por Caetano Veloso. O “cantante brasiliano” confere acentos singulares não só às palavras que canta em castelhano, como também à expressão melancólica, que imprime ao cantar a seu modo, mas travestido de tangueiro, o limiar de uma partida, de uma perda dolorosa, na fronteira de vida-morte. 
Dicen que por las noches
no mas se le iba en puro llorar;
dicen que no comia,
no mas se le iba en puro tomar.
Juran que el mismo cielo
se estremecia al oir su llanto,
cómo sufrió por ella,
y hasta en su muerte la fue llamando:
ay, ay, ay, ay, ay cantaba,
ay, ay, ay, ay, ay gemia,
Ay, ay, ay, ay, ay cantaba,
de pasión mortal moria.

E o contemplador ativo do filme de Almodóvar como dialoga com “Fale com ela”? Cada sujeito singular interage e responde a seu modo.  Ao exibir o  filme em turmas do Curso de Pedagogia, pude captar respostas as mais diferenciadas. O filme mudo inserido no meio do filme, por exemplo, costuma provocar um riso coletivo de imediato, mas terminada a sessão parece ser invisibilizado. Ressonâncias do tabu da sexualidade? Benigno, por sua vez, passa muito frequentemente de anjo a demônio, dependendo dos olhos que o veem a partir de determinados juízos de valor. Não falta quem o aponte como ingênuo e doente mental; poucas pessoas, a exemplo de Marco, tentam compreender os seus enigmas. Qualquer que seja a interpretação, cada uma traz consigo uma história e uma ideologia que conforma os conceitos de moral, de política e de conhecimento. Mas até quem não gosta do filme destaca cenas que provocam impacto, entre elas a de um quase irreconhecível Caetano Veloso, vestido como um cantor de tango e com os cabelos gomalinados. Ou a cena de um grito de socorro da corajosa Lydia que enfrenta touros, mas se apavora diante de uma cobra.
Assim, quando a sessão termina, recomeça a discussão do que diferentes compreensões provocavam a ver. Até porque o diálogo não pode cessar, a exemplo das últimas palavras que Benigno deixa em carta para Marco: “Para onde quer que eu vá, fale comigo”. E Marco, aquele racionalista que não conseguia falar com sua amada Lydia em coma, que tampouco conseguiu contar ao amigo que Alicia perdera o bebê mas se recuperara,  de repente fala com Benigno, sobre a campa rasa em que o depositaram. Decididamente Almodóvar me parece um cineasta bakhtiniano...
Por fim, mas não por último, pois não há últimas palavras,  para quem se aplica e implica em estudos bakhtinianos como contemplador ativo que faz das vivências motivo de reflexão, quero enfatizar uma faceta pedagógica presente nos cuidados terapêuticos com que Benigno se dedicava visceralmente a Alicia. Movido pela crença no devir, ecoa em seus atos uma profecia auto-realizável de que Alicia  retomará sua vida em suspensão. Assim pensando, cuida do corpo quando massageia os músculos da bailarina, de modo a mantê-los “prontos” para o despertar; mas cuida simultaneamente da mente, ao lhe trazer subsídios que atendam aos seus interesses, na esperança de alimentar, de fora, algum nível de atividade mental. E o faz diuturnamente, na certeza de produzir, interativa e iterativamente efeitos sobre o quadro estável em que se encontrava Alicia.
O que sabe, o que intui Benigno, quando insiste falando com ela, como quem segue um programa, por longos quatro anos?  Não há como discernir ou separar o saber de experiência feito que orienta seu fazer-dizer. Mas o filme como um todo nos instiga a repensar respostas responsáveis provocadas por uma espécie de prática terapêutico-filosófica e programático-construtiva a que Benigno se dedica. Impossível não pensar uma analogia com o saber-fazer docente pensado como um fazer com freireano, atento ao outro para favorecer um diálogo responsivo-responsável com o outro que habita a escola. Mas esse foco já não seria objeto de outro núcleo temático? Provavelmente sim. Mas se vida e arte, abertas que são a múltiplas conexões, não respeitam divisões e categorias, por que não lançar pontes entre os eixos temáticos, reabrindo a conversa entre eles?

Referências bibliográficas
ANDRADE, Mário. Prefácio Interessantíssimo in Poesias Completas. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1966.
BAKHTIN, M.  Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec, 1990. 
CYRULNIK, Boris.. La naissance de sens. Paris, Hachette. 1991
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido.  Rio de Janeiro: Afrontamento. 1975.
GERALDI, Wanderley. Alteridades espaços e tempos de instabilidade. In L Negri e R. P. de Oliveira. (Orgs). Sentido e significação em torno da obra de Rodolfo Ilari, São Paulo, Contexto, 2004.
VON FOERSTER, H. Visão e conhecimento:  Disfunções de segunda ordem in Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Dora  Schnitman (org). Porto Alegre:Artes Médicas, 1996.


O CONTEMPLADOR: MEDIADOR ENTRE EU(S)
Alessandra Regina Vasconcellos (Universidade Federal do Pará)
Elisama Fernandes Araujo (Universidade Federal do Pará)

Anoitece. Amanhece. Os pés tocam no chão. Mais um dia! Faço meu ritual diário: banho, café, cadernos, bolsa, chaves e vou... Pego um ônibus lotado - aqueles que mais parecem navios negreiros que outra coisa – Vou... Um assento. Um milagre. O que vemos da janela? (O vidro se torna a menor distância entre eu e o outro - mas há um abismo que nos separa). Um homem sentado, melhor, jogado. Tudo bem! O tempo é curto. “Senhores passageiros estou aqui pedindo ajuda porque não tenho trabalho e preciso comprar comida para meus dois filhos que estão doentes, mas é melhor pedir do que roubar. Se vocês puderem me ajudar, ficarei muito agradecido” e blábláblá... Como ele conseguiu entrar? Acho uma boa ajuda - R$ 0,50 - e jogo em suas mãos. Faço sinal e desço. Prosseguimos nosso caminho. Para lados opostos. Até então. Até então, por quê?
Em novembro passado (2010), 23 alunos da Universidade Federal do Pará, foram aceitos para irem ao círculo de Bakhtin na cidade de São Carlos, porém, faltavam recursos para que a viajem saísse dos limites do sonho e se tornasse realidade. A “ajuda de custo” não saiu a tempo; ouvimos que “aluno não viaja de avião”. Então, o que fizemos? Fomos pedir. Fazer pedágio. Usamos as ferramentas “voz e mãos” para construir o possível e assim partimos para os sinais da cidade metropolitana e estendemos nossa faixa: Pesquisa no Brasil se consegue assim: pedindo! A cada sinal fechado, se abria - para nós - o sinal verde, aquele que diz: Vá em frente! Prossiga! A priori, pensamos que seria um exercício – divertido e empolgante – foi bem mais que isso. Um aprendizado, diria.
Esse artigo foi germinado nesse pedágio, porém, o desabrochar surgiu a partir do momento em que nos demos conta de que estávamos no mundo e do quanto éramos/somos seres éticos e estéticos. Pode-se afirmar que esse evento se tornou estético, pois passamos a olhar o mundo – e quem o habita - de uma forma diferenciada, passamos, de forma mesmo involuntária – por conta dos vários discursos que nos inflamaram - a vivenciar, de fato, a vida de pedinte e, de acordo com Irene Machado “(...) o primeiro momento da atividade estética é a vivência.” (MACHADO. 2006, p, 142). Ainda mais, a experiência estética é, por assim dizer, “uma experiência do mundo vivido” (apud. ALVARES, Sônia. 2010, p, 109) que nos fora proporcionado por tal acontecimento.
Sendo assim, constatamos que ocorreram dois momentos para que atividade estética viesse a se manifestar: num primeiro momento, éramos apenas alunos da UFPA, pesquisadores, que gostariam de ir a um evento, por isso, foram aos sinais da cidade pedir ajuda financeira; já que a Universidade – que deveria prover-nos as despesas mínimas – adiava a resolução do caso. Num segundo momento, o olhar do contemplador começou a revelar-se. Então, um novo sentido surgiu e, passamos, dessa forma, de “meros” alunos a sujeitos-contempladores, olhando o mundo de maneira sensível, captando e observando o que, ao nosso redor, se encontra invisível, ou melhor, oculto, mas que só conseguem enxergar aqueles que cujos olhos educam.  Sujeitos que olham na direção em que apontam suas expressividades. Bakhtin afirma que:
“(...). Perceber esteticamente o corpo significa vivenciar os estados interiores do corpo e da alma a partir de uma expressividade exterior. Podemos formulá-lo assim: o valor estético se realiza quando o contemplador se aloja dentro do objeto contemplado, quando vivencia a vida o objeto de seu interior e quando, no limite, contemplante e contemplado coincidem.” (BAKHTIN. 1997. p. 81)

Fora o que aconteceu conosco. Houve o acabamento estético para o evento pedágio porque, além da vivência, este nasce - também - da extraposição. Com isso, o excedente de visão, por nós exercido, proporcionou com que os limites de visão simplista e limitada fosse rompido, e passamos e enxergar “(...) aquilo que está fora dos limites da visão do outro.” (MACHADO, 2005, p. 101).
Pode-se afirmar que esse excedente de visão nos foi semeado e ocasionado pelos “atores” do processo uma vez que O contemplador: mediador entre eu(s) possuíra um olhar que se encontrara, neste caso, na linha limítrofe entre esses eu(s) – outro(s) – e seus discursos. Quem eram eles? Éramos nós, alunos – sujeitos-contempladores -, a Instituição Universitária - que nos fez sentir, mesmo que de relance, pequenos diante de alguns fatos. Fatos esses que nos fizeram pensar sobre qual o valor, realmente, de um trabalho acadêmico/científico. Afirmo isso porque o processo de empatia fora tão intenso que, por vezes, julgamo-nos como os próprios pedintes: sem nada, humilhados, ridículos diante da sociedade. E a voz dos outro(s) prevalecia.
            Nos sentimos tanto quanto e, por vezes, até piores que o pedinte daquele ônibus. Estávamos, agora, do mesmo lado: o lado da desigualdade, da humilhação, quando o ser humano olha para si e procura algo de valia. O lado em que os discursos dos outros penetram a fundo: nas camadas da alma. Num dado momento, pelo processo de empatia, você não sabe mais se é o aluno/pesquisador, ou se é o próprio pedinte. Será que alguém consegue ouvir o que estou falando? Será que alguém me nota? O que estamos fazendo aqui? Sendo assim, esses questionamentos pairam sobre você, então porque aceitar os discursos? A resposta é simples: não há como excluir de você as outras vozes, caso isso fosse possível, ocorreria a morte do seu próprio Eu. Nas palavras de Bakhtin: 
            “(...) fechar-se ao Outro é decretar a morte dos sentidos; é quebrar a corrente comunicativa que deve ser ininterrupta; é expulsar de dentro do Eu e o mundo, expulsando-se com ele; é assujeitar-se. O assujeitamento só pode se dar pela expulsão do outro, quando o social não mais determina o Eu. E isso é a morte.” (BAKHTIN, 1997, p. 82)

            De acordo com isso, não há como se desvincilhar dessa corrente comunicativa que, de certa maneira, nos afeta enquanto seres de discurso. Nos afeta na proporção que reagimos, logo, reagindo, estamos nos posicionando, emitindo resposta. Se estabelece, portanto, uma comunicação entre eu(s). E a mensagem que nos estava sendo transmitida por meio daquele pedágio – através desse(s) eu(s) – era, até então, a de que estávamos desempenhando um papel desprovido de importância, pois, quando íamos pedir – com os carros já estacionados no sinal - as pessoas, muitas delas, não davam a mínima importância. Era vergonhoso. Quando os carros paravam no sinal e era chegado o momento de bater no vidro do carro, estender as mãos e dizer o motivo de estarmos ali – para quem dava oportunidade de nos fazer ouvir– sentíamo-nos derrotados pelos gestos negativos “não posso” como o balançar da cabeça; olhar para lado oposto, ou pior, fechar o vidro do carro quando nós nos aproximávamos; a indiferença, certamente, era até mesmo mais cruel que a moeda lançada. Palavras não ditas pelo silêncio, mas que atingem - mesmo existindo aqueles que se compadecem e dizem, educadamente, que não tem ajuda naquele momento mas que desejam boa sorte - . Palavras até mesmo ditas - como um homem que se pôs a nos xingar, nos ofender por estarmos ali -.  Bakhtin nos diz o seguinte acerca da palavra do outro: 
"Sabemos que cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória. A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como o produto da interação viva das forças sociais" (BAKHTIN, 2004, p. 66)

          O que dizer então, ou melhor, o que emitir como resposta quando a palavra do outro diz o que você não é? Quando seus pontos de vista o atingem? Nossa resposta fora olhar sob um novo aspecto – diferente -. Então, o abismo social que nos separava, na medida em que vivenciávamos, se dissipava. Estávamos vivenciando, saímos de nós e passamos a ver como o pedinte vê, passamos a sentir todo o desprezo, todo labéu por eles enfrentado. Por esta razão, o excedente de visão fez com que nos aproximássemos:
"O excedente da minha visão contém em germe a forma acabada do outro, cujo desabrochar requer que eu lhe complete o horizonte sem lhe tirar a originalidade. Devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, completar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele; devo emoldurá-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento". (Bakhtin in: Grupo de Estudos de Gêneros do Discurso - GEGe. 2009.)
           
Isso se dá para a completude do acabamento estético, quando você retorna ao seu lugar já fora do outro e dá forma e acabamento pela consciência que se tem desse outro. Você olha o mundo pela perspectiva do outro e não da sua e isso ocorre também mediante o processo de alteridade, que segundo Bakhtin:
            “(...) para viver minha vivência, devo abstrair-me das coisas, dos objetivos e dos valores para os quais estava orientada minha vivência e dos quais ela recebia sentido. (...) para fazer minha vivência em si, (...), devo sair dos limites do contexto de valores no qual se efetuava minha vivência, devo situar-me noutro horizonte de valores. Terei de tornar-me o outro relativamente a mim mesmo – a mim mesmo cuja vida é vivida em meu próprio mundo de valores -, e esse outro deverá ocupar uma posição de valores que seja fundamentada, que seja situada, fora do que sou (psicólogo, artista, etc.).” (BAKHTIN, p, 1997, 128) 

            Isto comprova que vivenciamos, realmente, essa outra vida, uma vez que o ser se reflete no outro e, no processo de alteridade, os indivíduos se constituem. Assim, você se modifica e sai do processo mais enriquecido, pois nos constituímos e nos transformamos em seres maiores, altruístas. A cada evento que se deixa vivenciar, em que você esquece, por um momento, o seu eu em desígnio do outro, certamente, você se torna mais humano.
Não só fizemos o pedágio como também estivemos no mundo e o experimentamos – tanto o que há de ruim, como o que há de bom – e essa foi a melhor parte, pois, “(...) a educação do olhar toma-se indispensável à sobrevivência, pois atua como uma forma de humanizão e de cultivo, um dispositivo para a cidadania (...)”. (ALVARES, Sônia. 2010, p, 114). Vários sentimentos brotados pelos discursos. Até mesmo pelo nosso próprio discurso. Mas o nosso, é de que somos seres agentes, transformadores e humanos. Ofereço agora um texto de uma aluna que esteve presente nesse evento. Que olhos!


Pedágio identitário: Uma experiência na Escola da Rua
Precisava-se daquilo, era manhã tarde, e as identidades desfilavam ao deslizar na pista Zygmunt. Cada nova abordagem um bum Baumantico se desvelava, e a fragmentação liquidada se desdobrava, e nova formação instável se velava. Nessas terras americanas de pedintes vários, éramos mais alguns ultra-desiguais contidos numa publicação bakhtiniana não reconhecida. Os sentidos distintos afloravam em momentos pontuais de conversas com os outros e em conversas sem os outros, mas com eles. Com esse vai e vem o coração ansiava por respostas e o cérebro sem entender transmitia emoção em círculos nodais - o porquê das indiferenças dos iguais?
Lá circulava bastante Real de Ficção, ao toque da unha no espelho escuro do carro surgia um sinal, um sim ou um não e, sim e não. Muitas foram as moedas servidas com um sorriso, mas também muito inchaço na garganta quando a mão estendeu vinte, mas o olhar não fora dado.
O pedágio das experiências identitárias que se revelam e se transmutam, e se revelam e se transformam, e se revelam e não se fixam, olham-se, negam-se, assustam-se, calam... silenciam...
A vastidão de desejos que se cruzam e se atrapalham na corrida desse dia, muitas vezes não permitia a visualização do real para todos, na faixa sufocada a dizer: Pesquisa no Brasil se faz assim: Pedindo!
Nesse dia voamos como pássaros as vezes estáticos, mas não aceitamos, porque a visão de repouso permanente nos assusta, daí preferimos ser dinâmicos como os dois reais jogado da janela do carro gentil, que voou...voou...voou em meio a tantos outros carros em movimentos apressados, mas chegou ao destino de nosso bolso envergonhado.
Já se foi... lá foi o dia e agora não somos mais eus, somos outros...somos outros e eus. Somos nós, sujeitos voláteis na liquideis identitária do real brutal que experimentamos.
Amanhã é outro dia. E agora?! Somos mais...
Texto de Auricélia Silva Monte
Acadêmica de Letras/UFPA
4° Semestre

REFERÊNCIAS:
ALVARES, Sonia. Educação Estética para Jovens e Adultos. São Paulo: Cortez, 2010.
BAKHTIN, Mikhail M.; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico nas ciências da linguagem. 11ªed. São Paulo: Hucitec, 2004.
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. 2ª.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
GEGe. Palavras e contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin. São Carlos: Pedro e João editores, 2009.
MACHADO, Irene. Os gêneros e o corpo do acabamento estético. In BRAIT, Beth. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2ªed. rev., Campinas (SP): Editora da UNICAMP, 2005.


EROTISMO – GROTESCO E MORTE: NOTAS BAKHTINIANAS ATRAVÉS DE CRASSO NARRADOR DOS CONTOS D’ESCÁRNIO, DE HILDA HILST.
Francisco Alves Gomes [22]
Augusto Rodrigues da Silva Junior[23]
Resumo
Neste exercício textual  procuramos estabelecer relações entre o corpo erótico- grotesco e morte em passagens específicas do livro Contos D’Escárnio: textos grotescos, da autora Hilda Hilst, tendo como suporte teórico o pensamento de Mikhail Bakhtin. Erotismo, Grotesco e Morte são temas um tanto amplos na teoria literária ou comparada, pois em muitos aspectos possuem singularidades, a começar pelo modo em que são estetizados na literatura, produto artístico e ideologicamente construído. Neste sentido a perspectiva dialógica fundamentada por Bakhtin aponta-nos para uma variedade de reflexões acerca do corpo erótico que é consubstanciado ao grotesco e inacabado pela ideia de morte, assim o sujeito está sempre às portas de um vir a ser, isto é, abrindo a possibilidade um constante processo assentado sobre o inacabamento.
Palavras chave: Bakhtin, corpo, erotismo, grotesco, morte. 

INTRODUÇÃO
Pensar o grotesco e sua representação na sociedade requer antes de tudo tomar por base a perspectiva da presença do grotesco enquanto categoria, portadora de caracteres que ultrapassem posições meramente ilustrativas sobre apontar aspectos visuais, mas tragam a criação de um diálogo fundamentado em horizontes teóricos que possam apontar caminhos para a compreensão de certos dilemas humanos. Neste sentido, propomos neste ensaio estabelecer uma relação entre o corpo, elemento erotismo-grotesco e a presença da morte, enquanto estrutura unificadora, pois a fusão do erotismo com o grotesco se dá através do sexo, liame das imagens construídas pela voz do narrador Crasso, do livro Contos d’Escárnio – Textos Grotescos, da escritora Hilda Hilst.
Nesta perspectiva, entendemos que o corpo é o mecanismo que seja ressignificado ou coisificado, este será a peça fundamental da produção de discursos de ou sobre ele. Em Hilda Hilst por ora nos deteremos no manuseio do corpo enquanto algo que é constantemente deturpado da sua condição natural. Deturpado aqui entendido como algo que está sempre as avessas do dito aceito socialmente. Ao expor suas aventuras sexuais o narrador Crasso, já velho, sistematiza uma rede de lembranças que tem por objetivo organizar o caos que é viver, por isso o sexo pode ser visto como a morte cotidiana, justificada pela busca constante de novas sensações corporais. O narrador Crasso tem a imagem da morte uma constância nos encontros a qual se envolve ao longo da vida, pois se partirmos da ideia de que “lembrar é estar vivo”, temos através dos relatos de Crasso uma grande inversão, pois no momento que determinadas lembranças são trazidas à tona, temos a morte sendo parte da história, uma espécie de Mnemósine maldita.  

O GROTESCO EM KAYSER E BAKHTIN: VERTENTES
Por ser um sistema autônomo e multifacetado, o grotesco se fez, e está presente nos discursos, na iconografia, enfim nos meios de comunicação. E este movimento deve-se muito a oposição entre feio e belo, categorias que precisam de muito fôlego para discussão. É necessário porém, a partir deste recorte de análise, apresentar duas concepções fulcrais para o entendimento do grotesco, importância e presença na literatura.
Em Wolfgang Kayser o grotesco é sistematizado através da pintura, da escultura e da literatura; há um confrontamento destas categorias artísticas, pois o grotesco na perspectiva de deste teórico se fundamenta, e ganha status dentro do Romantismo, vetor de discursos sobre arte engajada, voltada para a construção de um sentimento de nacionalidade. É interessante observar como Wolfgang busca no passado o contraponto para sustentar a ideia de grotesco, como algo que não pertencente a espaços estanques, tais como belo, feio:
Na palavra grottesco, como designação de uma determinada arte ornamental, estimulada pela Antiguidade, havia para a Renascença não apenas algo lúdico e alegre, leve e fantasioso, mas, concomitantemente, algo angustiante e sinistro em face de um mundo em que as ordenações de nossa realidade estavam suspensas, ou seja: a clara separação entre os domínios dos utensílios, das plantas, dos animais e dos homens, bem como da estática, da simetria, da ordem natural das grandezas. (...) com ele se indica ao mesmo tempo o domínio em que a ruptura de qualquer ordenação, a participação de um mundo diferente, tal como aparece na ornamêntica grotesca, se torna para todo ser humano uma vivência sobre cujo teor de realidade e verdade o pensar jamais alcançou bom termo. Sonho de pintores... (KAYSER,  1986, p 20)

O espanto com as imagens, advindas do mostruário grotesco pertencente à Antiguidade, em especial pela Renascença, comprovam como era incipiente o conhecimento que o homem detinha sobre os meandros fora do campo da racionalidade. O paradigma da época nos mostra como vigorava a necessidade de elaboração de um novo objeto que pudesse suprir os anseios do homem com relação a presença do grotesco.
Como a proposição das leituras do sonho, sob o esteio de Freud bem mais tarde, e até mesmo a reinvenção dos moldes artísticos através das vanguardas, o grotesco alcançou o homem a partir das suas profundas, e até certo ponto obscuras necessidades enquanto ser dicotômico, dotado de camadas interiores em constante conflito exercendo influência entre si, moldando e desconfigurando este homem às portas da modernidade.
 Especificamente sobre o grotesco no Romantismo, Kayser acentua:
Com a perspectiva grotesca dá-se unidade ao romance e, ao mesmo tempo, determina-ser a escolha do narrador. Do ponto de vista formal, as cenas se alinham, uma presa na outra; o relato concentrador e a descrição extensiva apenas podem-se desdobrar-se. E quase todas estas cenas são grotescas: o que parece pleno de sentido, se nos revela de algo destituído de sentido, e o que nos era familiar ficar estranho. Trata-se de arrancar o leitor de sua cosmovisão e da salva guarda no seio da tradição e da comunidade humana. Estilisticamente, sentimos muitas vezes a causticidade da exageração caricaturesca, à qual somos também impelidos para poder soltar uma risada de escárnio. (KAYSER, 1986, p 62)

 Ao analisar as Vigílias (1804), de Bonaventura, Wolfang Kayser demonstra haver uma sistêmica interna do grotesco no livro. Imagens que vão sendo ressignificadas ao longo das vigílias, e que geram, por conta da sua força descritiva e simbólica o riso, categoria próxima às questões inerentes a recepção do grotesco na sociedade.
Nos séculos XIX e XX, o escárnio encontrou nas revoltas sociais um campo fértil para suas manifestações atingindo uma enorme gama tanto nas modalidades textuais quanto nos veículos de comunicação. Essa modalidade do riso tem como alvo de expansão a fuga da “norma”. Pessoas, situações, acontecimentos, valores sociais, convenções, nada escapa ao olhar de quem lê o mundo através do escárnio, que reduz, deforma, amplia, rebaixa como bem se entenda para provocar o riso inteligível.    
Em Bakhtin o grotesco já possui configuração distinta à proposta de Kayser. Na obra Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, Bakhtin problematiza certos aspectos da concepção de Kayser sobre o grotesco. É essencial entender que para o teórico russo a representação do grotesco já havia adquirido respaldo na literatura através das histórias de Françoais Rabelais, com seu Gargantua e Pantagruel, afinal, Bakhtin não só faz uma revisão histórica importante sobre o grotesco em cima dessa obra, mas reelabora a ideia. Segundo Bakhtin:
É preciso sublinhar ainda uma vez que o aspecto utópico (“a idade de ouro”) revela-se no grotesco pré – romântico, não sob a forma do pensamento abstrato ou das emoções internas, mas na realidade total do homem: pensamento, sentimentos e corpo. A participação do corpo num outro mundo possível, a faculdade de compreensão do corpo adquire uma importância capital para o grotesco. A concepção de Kayser, porém, não deixa lugar ao princípio material e corporal, inesgotável e perpetuamente renovado. Tampouco aparecem o tempo, ou as mudanças, ou as crises, isto é, nada do que ocorre sob o sol, na terra, no homem, na sociedade humana, e que constitui a razão de ser do verdadeiro grotesco. (BAKHTIN, 2010, p 42.)

A fim de elaborar com precisão o pensamento Bakhtin critica em Kayser uma idealização do grotesco a partir de utopias fundamentadas em dicotomias: claro / escuro; feio / belo; formas pequenas / formas grandes. Esses processos de racionalização do ser acabam por dirimir as possibilidades de intercurso presentes nestes espaços, por isso Bakhtin se apropria do corpo, e suas particularidades reprimidas pelos sistemas de coerção e modulação humana, para demonstrar como o “corpo adquire uma importância capital para o grotesco”, neste sentido Bakhtin referencia no corpo a criação de um novo modus operandi para se pensar o grotesco, pois em Rabelais temos o corpo carnavalizado através do monstruoso e exagerado, que não causa somente estranhamento no leitor, mas também um efeito risível, a partir da sátira, como defende Silva Terallori:
A sátira associa-se ao riso da rejeição, o riso de zombaria, que contém a derrisão, e segundo Propp (1992, p.151), é o mais freqüente tipo fundamental do riso humano. O riso rebaixador é o riso da sátira, mesmo que nem toda sátira seja necessariamente cômica, pois o universo satírico trata também do horrível, das deformidades que causam dor e sofrimento (Hansem,1990). Na verdade, o discurso satírico é sempre modulado por tensões, concepção bipartida, que vai do cômico ao trágico (Hernandez,1993, p.22)”[24]

O avesso do convencional, a zombaria da situação tida como séria, a outra face do texto. Assim podemos considerar que Gargantua e Pantagruel se apóia de certo modo nos acontecimentos significativos para um coletivo à sua volta, em decisões sociais, nas relações de poder e os transforma em zombaria, num constante jogo de “trocas simbólicas”, tratado por Pierre Bordieu (1989). O exagero nas imagens demonstra também um transbordamento da condição humana, sujeita aos impulsos mais carnais, pois comer, beber, festejar e copular fazem parte, no contexto de Gargantua e Pantagruel de uma balança que equilibra o erudito com o popular, o saber academicista com as histórias do homem comum, e a mescla disto pode resultar no que Bakhtin defende que:
(...) o grotesco ignora a superfície sem falha que fecha e limita o corpo, fazendo dele um fenômeno isolado e acabado. Também a imagem grotesca mostra a fisionomia não apenas externa, mais ainda interna do corpo: sangue, entranhas, coração e outros orgãos. Muitas vezes, ainda, as fisionomias interna e externa fundem-se numa única imagem. (BAKHTIN, 2010, p 278)

 Deste modo, entre Bakhtin e Kayser o grotesco assume perspectivas diferentes na abordagem do que é visto e aceito como grotesco. Enquanto Bakhtin propõe uma consubstanciação do corpo com o que é mais animalesco do homem, Kayser explora determinados saberes sobre o grotesco que a princípio podem parecer difusos, mas que são relevantes, tendo em vista que a pesquisa de Wolfgang representa um esforço de sistematização do grotesco enquanto categoria estruturada.
CONTOS D’ESCÁRNIO – TEXTOS GROTESCOS, DE HILDA HILST
  Na obra de Hilda Hilst, de uma maneira geral, principalmente a parte encaixotada como pornográfica, é vista apenas como uma junção de imagens de cunho sexual, regidas por narradores decadentes. No entanto a relação do corpo com o sexo e como o grotesco se realiza dessa junção parece-nos uma abordagem acessível na medida em que se busca romper com os rótulos literários.
Ao longo da história da humanidade o sexo recebeu diversas configurações. Para algumas culturas sagrado em outras era visto como profano. Neste sentido Robert Satm afirma: “Trepar, para Bakhtin é inseparável de cagar, mijar e outros lembretes semicômicos da deliciosa grotesquerie do corpo.” (1992, p 86),  por isso ao se tratar de uma obra encaixotada como contemporânea temos que tratar os Contos de d’Escárnio tendo em vista também a ideia de inacabamento, tal cuidado faz-se necessário porque com o advento de tantas teorias sobre o comportamento humano é grande o perigo de delimitar o caráter de um texto como esse, com seus sentidos na esfera do pornográfico, quando as possibilidades de interpretação são bem maiores por conta dos signos e a tessitura que o compõe.
Em Contos d’Escárnio – Textos Grotescos, temos a imagem da “praça pública”, da qual nos fala Bakhtin atenuada pelo desejo de isolamento. Há um constante conflito entre o individual e o coletivo, catalisado pelo sexo, já que acompanhamos um narrador memorialista evocar um tipo de desejo de aceitação social. Essa latente aceitação cumpre-se através do obsceno.
 O corpo é obsceno e chulo, mas não só no que está referenciado na pornografia simplesmente – não esqueçamos que este é o segundo livro da obra obscena de Hilda Hilst. Há uma construção de um sistema não oficial, no sentido bakhtiniano do termo.
Buscando um diálogo entre dois escritores aparentemente pertencentes a contextos distintos, Soraya Calheiros Nogueira elabora um estudo intitulado: O grotesco em Miguel Jorge e Julio Cortázar. A maneira como a pesquisadora dialoga os autores, sob os moldes da literatura comparada é também, peça chave na espinha dorsal deste ensaio em que a obra Contos d’Escárnio – Textos grotescos, Hilda Hilst é analisada. É necessário destacar que Calheiros tem em Bakhtin e Kayser a formação base do escopo teórico da pesquisa realizada em torno de Cortázar e Jorge, ao finalizar Soraya arremata que:
 (...) ambos os escritores escreveram sobre a condição do homem na sociedade com seu comportamento ambivalente, construindo uma leitura carnavalizada. A presença do grotesco nos contos analisados corresponde aos signos dos seus tempos, abrindo caminhos para a exploração de novos trabalhos  artísticos-culturais não só na América Latina como também em todo mundo (CALHEIROS, 2002, p 124)

 O não oficial que é oficializado na consumação dos desejos do homem, assim o grotesco torna-se evidente a partir dos conflitos que o corpo nos seus usos e desusos trava com as demais modalidades discursivas, no ato sexual tal característica ganha força, pois reverbera. Ao pesquisar o grotesco em Miguel Jorge e Julio Cortázar, Soraia Calheiros assinala segundo Bakhtin que:
A imagem grotesca caracteriza um fenônemo em estado de transformação, de metamorfose ainda incompleta, no estágio da morte e do nascimento, do crescimento e da evolução. A atitude em relação ao tempo, à evolução, é um traço constitutivo indispensável da imagem grotesca, de certo modo o caráter polifônico que Bakhtin traça, ao relacionar polifonia co. Seu segundo traço indispensável, que decorre do primeiro, é a sua ambivalência: os dois pólos da mudança, o antigo e o novo, o que morre e que nasce, o princípio e o fim da metamorfose são expressados (ou esboçados) em uma outra forma. (Apud BAKHTIN, 1987, p.22)

Observamos que a fronteira enxergada como um vir a ser é alvo de lutas onde a oposição está sujeita a mudanças, no próprio movimento que esta possui para se construir enquanto oposição. Por essa via: De que maneira o corpo torna-se grotesco nos Contos d’Escárnio – Textos grotescos? O questionamento pode parecer um tanto óbvio se pensarmos somente nas imagens que o narrador nos traz, de maneira híbrida e caótica, já que o texto não é linear, mas cheio de formas textuais que acentuam intertextualidade. No prefácio Alcir Pécora assinala que:
há uma verdadeira anarquia de gêneros em sua disposição discursiva que desordena completamente a narrativa: romance memorialístico, diálogos soltos intercalados abruptamente à história; imitação de certames poéticos à antiga, apóstrofes, aos leitores, maltratados o tempo todo como ignorantões e picaretas, bem como aos orgãos sexuais; contos e mini-contos das personagens; alusões políticas; comentários etimológicos e eruditos; (...) mistura babélica de línguas; coletâneas de instruções inúteis para performances estúpidas; paródias de textos didáticos, textos dramáticos politicamente incorretíssimos, que fazem completamente jus ao título de teatro repulsivo; fábulas e piadas obscenas; fragmentos de novela epistolar; excertos filosóficos; textos psicografados postumamente etc. – tudo isto em sucessão acelerada, desempenhando precipícios e vertigens. (PECORA, 2008, p 5-6)

Em Hilda Hilst há um movimento cíclico que nos permite analisar seus textos como peças de um mosaico que ganham sentido de acordo com os interesses do analista. Neste sentido pensaremos o grotesco caminhando junto à ideia de incabamento, como instrumento de caráter sócio cultural, onde a ação do narrador e a linguagem presente em diversas facetas do seu discurso funcione como estopim para que a presença do grotesco alcance sentido.
 Robert Stam, em BAKTHIN: da teoria literária a cultura de massa, diz que “(..) o carnaval é principalmente igualitário. Ele inverte a ordem, casa opostos sociais e redistribui papéis” (1990, p 89), assim na linguagem literária de Hilda Hilst o sexo extrapola o modelo reconhecível socialmente, e o corpo além de ganhar novos significados passe a ter em seu entorno uma inteligência própria dotada de símbolos específicos assimilados somente por aqueles que circulam os limites do baixo ventre moderno, dos palavrões de baixo calão, dos ambientes onde o luxo e lixo convivem em constante tensão, mas nem por isso distantes um do outro.  
Stam endossa ainda que: “para Bakhtin, a sexualidade sempre existe em relação: em relação à existência do corpo, em relação a outras pessoas, em relação à vida social comum.” (1990, p 79), assim a tensão existente entre o corpo e sujeição presentes de imediato nos Contos d’escárnio, nos leva a pensar a carnavalização como uma constante ao longo do livro. O Estado é subvertido através do indivíduo em constante luta a fim de libertação do sistema que o oprime, por isso o corpo configura-se grotesco a medida que não é apenas ultrajado, mas a medida que este se deleita mediante a perversão do homem.  Nessa troca dotada de ambivalência, ambos são responsáveis, neste sentido Soraia Calheiros assinala a voz de Bakhtin que afirma: “o pensamento grotesco interpreta a luta da vida contra a morte dentro do corpo do indivíduo com a luta da vida velha recalcitrante contra a nova vida nascente, como uma crise de revezamento.” (apaud Bakhtin, 1987, p 44)

AS VOZES EROTICO – GROTECAS E MORTAIS DE CRASSO
Após leitura mais atenta dos Contos d’Escárnio – Textos Grotescos, fixamo-nos em todas as imagens em que o personagem Crasso evoca um discurso sobre a morte, diretamente ou indiretamente. Em todas as dezessete incidências ao falar da morte Crasso, mediante suas lembranças traz também o corpo e o sexo como eixos do seu discurso. Para este personagem só faz sentido relembrar suas experiências sexuais, se a morte ou uma aura de morte estiver presente:
Ela me disse: me dá uma surra. Entendi que era uma surra de pau. E fui metendo, me agüentando longamente para não esporrar, pensando na mãe morta, no pai morto, na missa de sétimo dia do tio Vlad, que depois eu conto como ele morreu, e nesse todo patético deprimente que é morte e doença.”  (HILDA, 1990, p. 17)

De início observamos que o personagem ao relacionar-se com as mulheres ao longo do livro parece criar em torno de si um conflito entre morte e vida. O nexo do ato de transar parece repousar não somente no desejo de satisfação humana, mas numa luta ainda por superar os complexos ediapianos, dos quais Freud iluminou através de sua teoria. Durante o ato sexual pensar nos pais mortos traz a tona também um desejo que mistura fascinação e medo da morte, que é inerente a humanidade, como explica Philippe Ariès, na obra História da Morte Ocidental. A seguir Crasso diz que:
Desse diálogo inaugural lembro bem muito bem. Depois foi ficando mais complicado. Padre Cré falava no demônio e suas pompas, na carne dos outros, na carne de todo mundo, falava tanto em carne que eu fui ficando com a boca cheia d’água, louco pra comer uma bisteca. Bisteca de carne mesmo. Digo “de carne mesmo”porque na Gota do Touro bisteca era cona, xereca, boceta, enfim. (HILDA, 1990, p 25)

Aqui o discurso de Crasso mergulha numa total ressignificação; o órgão feminino é comparado a um pedaço de carne, e como tal recebe outras significações. É interessante o processo de reelaboração do discurso de outrem feito por Crasso. Ao ouvir o padre, figura simbolicamente séria, falar da carne de uma maneira singular, este solapa do discurso religioso, trazendo-o para outra categoria discursiva, marcada pelo desejo carnal. As imagens de comer e transar tornam-se correspondentes nesse percurso, pois evoca dois tipos de saciamento humano, o alimentar e o sexual. Ao ficar com a boca “cheia d’água louco pra comer uma bisteca”, Crasso passa por um processo de animalização comum aos que tem fome, comportar-se como animal ante a presa. O ato de salivar neste caso complementa a ideia de um sujeito que está sempre sob a égide do seu baixo corporal.
Em outra passagem o personagem Crasso traz mais uma vez a imagem do pai morto, só que desta vez cria-se um jogo de semelhança e dessemelhança: “Será que era porque eu não tive pai nem mãe e tão pouco tempo o sacana chupado do tio Vlad? Será porque o pai morreu em cima duma puta eu ia ficar em cima das mulheres o tempo todo?” (HILST, 1990, p 32), condicionamento e sujeição ao sexo funcionam como palavras de ordem para Crasso, que vê no sexo um antecedente da morte, que ao longo dos contos vai se reconfigurando, como é descrito a seguir:
O discreto decote da blusa deixava à mostra a textura reluzente da pele. E que pescoço. Não desses muito longos. Para ser exato, o mesmo pescoço da Vênus de Praxíteles. Também estive lá. Em Roma. Tenho horror de pescoços longos. Eles me lembram cisnes. E cisne me lembra a morte. A morte do cisne. E a morte do cisne me faz lembrar que também eu vou morrer um dia. Espero que não seja no lago. (HILST, 1990, p 33)

Quando observa na figura feminina a semelhança com o cisne, o personagem meio que se torna retórico ao mesmo tempo que irônico ao evocar o Lago dos Cisnes, balé do russo Tchaikovsky, no qual o sexo culmina com a morte da princesa amaldiçoada a virar cisne. Crasso sempre aproxima a perspectiva da morte pare perto de si; as vezes com aversão outras com melancolia, o sentimento de se encontrar e entender-se, como sujeito fragmentado (HALL, 2005), perante uma sociedade onde não há escapatória senão uma atitude cínica diante da vida, para Crasso tudo que resta são lembranças, não há apego nem mesmo às obras literárias de envergadura que este conheceu. Seria este personagem um exemplo de cínico, marcado pela individualidade?
O despojamento misturado a um debochado olhar acerca da vida, mostra que Crasso além de não aceitar a morte como destino, prefere encará-la como parte de uma estrutura, onde o inacabamento humano é administrado por meio de um processo de alteridade, mesmo que esta destoe de sua postura ante a morte dos outros, como o faz quando diz: “Hans, ninguém quer nada com Lázaros, ainda mais esse aí, um cara leproso e ainda por cima morto. Mas, ressuscitou Crasso, ressuscitou!” (HILST, 1990, p 41), sabemos da morte de um escrito na obra por meio de Crasso que não reflete o porquê desta morte, mas relembra trazendo uma metáfora um tanto econômica: “Matou-se logo depois. Um tiro trêmulo, a julgar pela trajetória inusitada: um raspão na raiz do nariz, mas atingindo em cheio o olho esquerdo.” (HILST, 1990, p 41).
Logo após este relato Crasso lembra das últimas palavras do pai antes de morrer: “O pai morreu muitos meses depois. Ouviu-o dizer à mãe antes do para sempre morto: “Presta atenção no rapaz, não é mais o mesmo”. Ele estava certo. Nunca mais fui o mesmo.” (HILST, 1990, p 45), parece-nos que aqui o personagem enfrenta a memória, mas ao invés de (re) possuir um casarão, como o faz Bento Santiago afim de melhor administrar o fluxo memorialístico. Temos em Bentinho, personagem de Dom Casmurro, obra de Machado de Assis, um ser que ao rememorar acaba vivendo plenamente, a plenitude nesse personagem nos apresentado de início como casmurro, vem por meio do ato de sistematizar, a partir do seu olhar solitário, a vida. Em Dom Casmurro podemos perceber os desejos em compartimentos, onde as fissuras da sociedade só ultrapassam e ganham respaldo se houver outro sujeito, responsável por dissecar aquilo que as aparências escondem, deste modo a memória para este personagem de Machado de Assis, é quase um personagem, dotada de personalidade própria, o corpo no caso de Bentinho faz-se distante, pois o viver já ganhou outro significado. Para Crasso existe apenas o seu corpo, um santuário deturpado, maldito e que concretiza aquilo que faz no dia a dia com as figuras femininas:
Enquanto te chupo me vêm  instantes do que seria morrer, resíduos de mim, resíduos do Partido, não aquele, o Partido de mim estilhaçado. Lúcido antes, agora derrotado mas ainda vivo, derrotado mas ejaculando, o caralho nas tuas mãos, a cabeça-abóbora nas tuas coxas, o grosso leitoso entupindo os poros de  tuas palmas. Arquejo. Vejo Deus e toda a trupe, potestades, arcanjos. Estou cego de santidade.
De velhacaria
Vai ficar chupando até quando? Pareceu  até que morreu por aí, ela me diz.” (HILST, 1990,  p 46)

 Depois do êxodo pessoal que o personagem enfrentou ao aceitar pelo menos no plano sócio – cultural a perspectiva de que um dia morrerás, a rememoração das transas de Crasso adquirem um certo tom entre sagrado e profano. Ao chegar ao êxtase sexual, o personagem vê Deus, como se este fosse fruto do sexo, essa imagem nos lembra a escultura O êxtase de Santa Tereza, no qual as feições da santa sugerem um orgasmo a partir da uma revelação ou experiência divina.
Crasso assume uma postura quixotesca diante da vida, e ao trazer o personagem de Cervantes observamos que em Dom Quixote existe um movimento de reconfiguração dos espaços a partir da percepção do personagem, que se metamorfoseia a medida em que loucura e racionalidade travam uma relação de desnorteamento,  só que loucura, no sentido estrutural e historicizante da palavra, como propõe a História da Loucura, de  Michel Foucault não basta para delimitar a ânsia do personagem Crasso. Em Foucault o funcionamento da loucura não acontece, com a modernidade, na coletividade, com a chancela de que quem observa o outro comporta-ser de maneira estranha aos padrões aceitos socialmente, porém para o filosofo e historiador, são nos espaços dominados por uma ordem normatizadora e, por conseguinte, cerceadora é que se fica claro o funcionamento das relações de poder existentes em torno, neste caso da loucura.   Transar para Crasso é um sinal de morte, não de vida, e esta sinalização se repetirá ao longo dos contos, e funcionará também como um protesto debochado à pátria:
Se você quer se matar porque o país está podre, e você quase, pegue uma pedrinha de cânfora e uma lata de caviar e coloque ao lado do seu revólver. Em seguida, coloque a pedrinha de cânfora debaixo da língua e olhe fixamente para a lata de caviar. Só então engatilhe o revólver. (é bom partir com olorosas e elegantes lembranças. Atenção: não dê um tiro na boca porque a pedrinha de cânfora se estilhaça) (HILST, 1990, p 53)

Ao tratar do suicídio, por conta da desilusão com a podridão em que o país se encontra, Crasso usa da sátira com o intuito de parodiar o sistema, mesmo que para isso o sujeito tenha que perder a vida. Ir contra o sistema, na visão deste personagem é entregar-se, mesmo com a ilusão de que “é bom partir com olorosas e elegantes lembranças.”, o homem em grande parte dos textos de Hilda Hilst, sofre de uma angústia natural. Nascer é sinônimo de sofrimento, portanto, referencia a morte. Crasso é escravo não do corpo, mas do processo de saturação que alcançou por viver uma vida de constante busca, marcada por uma atmosfera nauseabunda que o torna quase animal: “Quem sabe se na ilha encontro meu porco. Porque cada um de nós, Clódia, tem que achar o seu próprio porco. (Atenção não confundir com corpo.) Porco, gente, porco, o corpo às avessas.” (HILST, 1990, p 79).
Essa passagem em especial dialoga bastante com as imagens que Bakhtin analisa em Gargantua e Pantugruel, o homem, ainda membro de uma coletividade, às voltas de um sistema não oficial em contraste com o sistema dito oficial. Em umas das passagens de Gargantua, usa-se a palavra chafurdar, em referência a chafurdar na lama, tal qual um porco. Com o jogo de palavras: corpo/porco Crasso reflete sobre a condição do homem, de humanidade ou humanóide, para o personagem os homens são de fato porcos, por isso arremate que não se entende corpo.
Nessa condição de suínos, não há fábula, como é o caso de A Revolução dos Bichos, de George Orwell, no contexto de Crasso os porcos não são domesticados, por isso o homem seria animalesco e nada mais, e ser animalesco de certa forma é ser grotesco, já que “cada um de nós tem que achar seu próprio porco.” Outra alusão que podemos fazer mediante o jogo entre o sagrado e o profano é a ideia do porco como homem ser amaldiçoado , já que numa passagem do antigo testamento Jesus cristo lança uma legião de demônios sobre uns porcos que entram num rio e se afogam. Sob esse viés o homem seria como um porco, amaldiçoado por natureza, sem chance de avançar a não ser para a morte.
O personagem passa então a pensar nos preparativos de sua morte, sempre cruzando as histórias do passado, onde transar era mais que uma ocupação, mas uma questão de dignidade humana. Ao pensar nos preparativos fúnebres diz:
Querida Clódia: há algumas coisas para te dizer daqui do meu voluntário exílio. Por exemplo: quando eu morrer, quero que ao invés de bolinhas de algodão que usualmente colocam nas narinas do morto, que você providencie bolinhas de pentelho virgem. Quanto aos pentelhos de virgem, porque quero sentir cosquinhas no nariz e espirrar se não estiver morto. (HILST, 1990, p 79 – 80)

O tom jocoso e a ironia permanecem oscilando entre ansiedade, desespero, talvez por isso a imagem da virgem sejam colocada no roteiro mórbido de Crasso. A virgem, a que não sofreu ainda com as dores da vida, como por exemplo, o nascimento de um filho. No entanto isto é  invertido no instante em que o personagem acredita que os pentelhos no nariz poderão acusar se ainda estiver vivo. Existe nessa imagem a perspectiva do vivo que acredita-se morto e que necessita de signos que possam tirá-lo do impasse. Para Crasso o limiar entre a vida e a morte pode ser resolvido com pentelhos virgens.
A seguir o personagem entra uma vez mais na crise de saber-se morto a qualquer momento, seja a longo, médio ou curto prazo: “Saber da própria morte, por exemplo, é uma maçada. A profusão de vermes e de asas que espoucarão no meu corpo – monturo.”  (HILST, 1990, p 81), para Crasso apesar da morte ser cada vez mais certa, parece haver aqui uma perspectiva de morte não como fim, mas entrada em um novo. A palavra vermes indica claramente um processo de apodrecimento, enquanto que a palavra asas propõe pensar no vôo, aquilo que ganha asas para a plenitude.
Se pensarmos nos vermes honrosos de Brás Cubas que recebem memórias de presente, perceberemos em Crasso um desgosto diante do futuro ao mostrar “corpo – monturo”, ou seja,  um corpo que estará relegado ao lixo, às coisas imprestáveis sem serventia. Em memórias Póstumas de Brás Cubas, os vermes podem ser vistos como os privilegiados do que será apresentado a seguir, e esta perspectiva deve-se não somente ao fato de que estes, no fim comerão a carne morta, mas que são partes da engrenagem da morte, pois no fim tudo se deteriora.  A morte para Crasso seria o mesmo que deixar de servir para ser jogado fora, isto dialoga diretamente com as teorias acerca do uso e desuso que os seres humanos fazem dos bens de consumo. Portanto, a visão dos vermos devorando o corpo para Crasso pode ser visto como o inacabamento eterno, um comer eterno que não deixa escapatória já que até mesmo as lembranças passam, ou seja, morrem.
Adiante Crasso inverte as posições e as funções tanto da morte, como dos vivos: “A palavra morte arrancada do cérebro. Olharíamos o morto e seria como se olhássemos uma travessa de alfaces. Comer o morto seria até melhor do que sabê-lo.” (HILST , 1990, p 81), dois aspectos assomam: Crasso tenta banaliza a ideia de morrer e depois imagina-se comendo “o morto”, a figura masculina e não feminina está na posição do morto que poderia ser devorado antropofagicamente; quando o personagem pensa na “morte arrancada do cérebro”, faz um movimento de racionalização e desracionalização, como se estando de fora do cérebro o elemento mórbido, seria talvez mais fácil encará-la performatizada naqueles que perderam a vida, e não já presente no plano da idéias. Essa idealização da morte como algo distante da condição de ser pensante, para Crasso, é exposta no penúltimo passagem em que o narrador fala da morte abertamente, de forma direta:
Tento meditar coisas inúteis: lamber o traseiro de uma mula, por exemplo, penso em Hitler defecando sobre as loiras cabeças de suas amantes (era uma das taras terríveis dele), cuspo no meu pau e aliso-o com frenética doçura, penso até (perdão, Clodinha) nos dedos pretos de Rubito adentrando tua rodela e chupando-os depois, e nada! Nadinha! O pau é uma tripa engruvinhada, o pensar nas cricas me dá ânsias, agora sim entendo por que o Buonarotti dizia que as genitálias eram as coisas mais feias dos corpos humanos, também acho, gostaria de ver a boceta de uma cigarra, de uma andorinha, a genitália dos lírios, das boninas, o pau do beija-flor, do pombo, do tico tico. Clódia, eu sou um verme viscoso e nojento. (HILST, 1990, p 86)

 Neste momento o personagem já possui consciência de que nem mesmo o sexo pode tirá-lo da condição de sujeito, carne, odores e flatulências, tudo está consumado. A própria condição de idoso já demonstra incapacidade diante da morte. Ao comparar o órgão genital masculino com uma tripa, o personagem coloca em xeque a ideia do vigor sexual explorada amplamente pelos seus relatos. E ao questionar-se sobre os orgãos genitais dos animais, Crasso decide aceitar a ideia de feio como algo inerente à genitália, por isso mesmo grotesca. Nessa passagem  não há a incidência de um discurso erótico, pelo contrário Crasso termina comparando-se a um “verme viscoso e nojento”,  fica-se claro que com a morte o ser humano perde a beleza. Em História da Feiúra, Umberto eco expõe que ao longo da tradição ocidental os limites entre belo e feio nem sempre eram tão marcados, e a concepção de belo e feio estava arraigada a outros setores da sociedade.
Na última descrição direta de morte, Crasso relata: Os meninos resolveram matá-la. Ela e o cachorro. Amararam-se com barras de ferro. Com facas também. Cachorro ganiu comprido. A velha nem um pio. Um dos meninos disse que queria comer os olhos da velha (HILST, 1990, p 89). Nesse momento o personagem não traz sexo ou erotismo, aos invés disso, somos levados a saber de um crime com requintes de crueldade. Uma velha e um cachorro são mortos, sem uma razão aparente, o que chama atenção pra este momento é a ideia de comer os olhos, olhos mortos diga-se de passagem. Os olhos como símbolo do ver, aqui é tratado de forma grotesca. Isto se deve não somente pela situação, mas pela maneira como este narrador memorialista nos apresenta o caso. Poderia ter sido colocada mais uma de suas experiências, ao invés disso o leitor se deparara com a morte sistematizada por um grupo de meninos, mais adiante o narrador informa que o desejo dos meninos de comer os olhos seria porque estes, tem gosto de ostra, e para muitos ostra funciona como afrodisíaco, assim mesmo tentando elaborar uma memória séria, somos pegos pela ambivalência, da qual o narrador se apropria para cativar o leitor, pois este livro também critica de forma dura o mercado editorial, que como urubus tendem a pasteurizar autor e obra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao refletir sobre as relações existentes sobre o erotismo – grotesco e morte a partir das memórias de Crasso vimos que muito das teorias de Mikahil Bakhtin ganham eco numa obra pertencente a contemporaneidade, por isso os diálogos podem ser ampliados, redimensionados ou propostos à luz da comparação entre diversos autores que trabalharam o corpo, que sendo erotizado não deixa de ser grotesco, e por isso sujeito à morte.
Também observamos que o hibridismo textual presente em pontos específicos do livro são responsáveis por ocasionar um certo desnorteamento no leitor acostumado com leituras confortáveis, em Hilda Hilst  o texto caótico é responsável pela unicidade de idéias, bem como o amadurecimento da trama, que independe de tempo e espaço para torna-se plena, e mais do que isso: torna-se multifacetada e não apenas encaixotada num único gênero, pois o homem, além de ter uma natureza ambivalente, sabe-se senhor de si.
 Entendemos também que o grotesco ganha força na ideia de uma mutabilidade constante, que além de tornar o homem com seus valores uma máquina de coisificação produz também a instabilidade, a incerteza e angústia de tempo que passa por entre os dedos, por isso mesmo morte. Afinal o sexo é visto como a pequena morte cotidiana. O corpo o túmulo, onde cada indivíduo no ato sexual enterra grotescamente o outro em si.

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TELAROLLI, Sylvia. Sociedade e Literatura no Brasil. Editora UNESP. São Paulo, 1999.




PALAVRAS “CONTADAS”, RISOS INCONTIDOS: A SÁTIRA RESPONSIVA NOS CEM TOQUES CRAVADOS DE EDSON ROSSATTO
Francisco Cláudio Alves Marques
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”

A primeira e imediata reação suscitada pela leitura dos nanocontos de Edson Rossatto, publicados diariamente no seu blog, é a do riso. Outras vezes, o riso explode após alguns segundos de hesitação. Podemos conceber o riso proveniente da leitura de um enunciado escrito como manifestação da compreensão responsiva ativa da parte do leitor/internauta? E esse riso poderia ser considerado uma forma de enunciado, já que responde a uma incitação da parte do autor?  Coloco esse questionamento em pauta com o fito de avaliar o alcance dos nanocontos escritos por Edson Rossatto, de entender a reação dos milhares de leitores que leram seus Cem toques cravados ou que acessam o blog do escritor todos os dias. E quanto ao fato de os nanocontos representarem proposta de um novo gênero? À luz da teoria de Bakhtin acerca dos gêneros e da responsividade, tentaremos aqui esclarecer alguns pontos relativos à criação desse novo gênero, o nanoconto, bem como da reação dos leitores/internautas frente aos escritos de Rossatto como uma manifestação da compreensão responsiva ativa de tais enunciados.
Com Bakhtin entendemos que os gêneros são meios de apreender a realidade. Nas formas tradicionais de composição, a realidade vem sendo traduzida e acomodada no interior de cápsulas narrativas prescritas pela escola e pela academia há séculos. Refiro-me aos gêneros romance, conto e crônica. Contudo, estamos vivendo numa época em que a velocidade, a correria e a pressa massificada requisitam novos meios de apreensão e tradução da realidade, do cotidiano. Lemos de relance, às pressas, de modo que mensagens escritas num out-door, se longas, não podem ser lidas na íntegra por transeuntes e passageiros que, aos milhares, todos os dias, transitam pelas ruas e vias das grandes metrópoles. Como, então, levar literatura para um público que tem menos tempo de absorver longas narrativas? Por que meios conduzir cultura e informação para essa massa veloz e itinerante?
Mesmo uma leitura apressada dos nanocontos de Rossatto leva os mais desavisados a perceber que a temática central de seus escritos repousa no cotidiano, destacando-se pelo fato de traduzir cenas e fatos da vida diária de forma bem humorada, muitas vezes beirando o humor negro e o sarcasmo, como podemos conferir neste conto intitulado EPITÁFIO: “Aqui jaz Zé Tonhão, que, em vida, nunca pediu desculpas (e morreu exatamente por isso!)”.
  Usando o mesmo esquema das tirinhas de jornal, mas sem o apoio das imagens para a compreensão do texto, Rossatto provoca a imaginação do leitor, pois, segundo ele, todas as suas micronarrativas têm imagens subliminares que são visualizadas apenas na mente do leitor/internauta. Às vezes, os contos apresentam-se como uma charada a ser decifrada, requisitando do leitor conhecimento prévio da matéria reelaborada literariamente. Por esse motivo nem sempre a risada vem imediatamente após a leitura dos contos. O leitor precisa de tempo para assimilar, processar e decodificar a mensagem, só então o riso responsivo explode. Vejamos: “Não e não! Tem que ser Josafá!. “Esse nome é feio! Só empresto a barriga se ele se chamar Jesus!”. A sátira ao mito da concepção divina e a disputa pelo nome da criança a ser gerada pelo método moderno da popular “barriga de aluguel” dessacraliza aquele e satiriza este pela aproximação e nivelamento no plano da sátira. Aposta-se na perspicácia do leitor para que a mensagem seja decodificada e o riso exploda como enunciado/resposta.    
Ao que tudo indica, o gênero nanoconto tem a função precípua de entreter, divertir, levar o leitor ao riso. E o riso porta consigo uma concepção de mundo. “Novos modos de ver e de conceptualizar a realidade implicam o aparecimento de novos gêneros” e, ao mesmo tempo, “novos gêneros ocasionam novas maneiras de ver a realidade[25]”. É desse modo que muitas pessoas hoje vêem a realidade, decifram o mundo: assim como cenas e fatos da vida são cotidianamente emoldurados artisticamente no formato de “cem toques cravados”, ao homem moderno, sem muito tempo para usufruir as coisas boas da vida, resta a opção de contemplar a realidade e o mundo pela janela do apartamento, do ônibus, do avião, também espécies de moldura.   
Acreditamos que o riso do leitor funcione como resposta aos enunciados cômico-satíricos produzidos por Rossatto, sinalizando para uma cumplicidade entre os interlocutores. Bakhtin assinala que, “o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (lingüístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o ...” [26] Com Bakhtin podemos conceber o riso suscitado pela leitura dos minicontos de Rossatto como uma forma de enunciado, que por sua vez, é também responsivo: “[...] toda compreensão plena real é ativamente responsiva e não é senão uma fase inicial preparatória da resposta (seja qual for a forma em que ela se dê)”.  Logo, poderíamos conceber no riso uma ação responsiva baseada na compreensão plena da mensagem codificada e emoldurada pelos “cem toques cravados” propostos pelo autor.
Outra questão que não pode deixar de ser abordada aqui, ainda à luz das teorias bakhtinianas, diz respeito à escolha pelo autor de palavras que condigam com a realidade a ser traduzida para o interior da obra/enunciado. Na verdade, encontrar palavras que caibam na moldura proposta requer muita habilidade e traquejo com a língua, porque os sinônimos escolhidos para adequar-se ao estreito espaço da micronarrativa não podem interferir negativamente no sentido global que o autor pretende dar a mensagem. No caso do gênero nanoconto, é preciso adequar toda a mensagem que se quer passar ao tamanho exato: uma troca de palavras por sinônimos, o uso de pontuação e/ou caracteres especiais como aspas e parênteses etc. Contudo, tais caracteres só entram na construção do enunciado sob a condição de significar e no caso dos textos de Rossatto, estes traços funcionam como recursos estilísticos indispensáveis para reforçar a expressividade, como no já citado EPITÁFIO: “Aqui jaz Zé Tonhão, que, em vida, nunca pediu desculpas (e morreu exatamente por isso!)”,. Aqui, os parênteses representam uma síntese conclusiva do fato de Zé Tonhão ter vivido sem nunca pedir desculpas. Toda a vida da personagem passa a ser recriada pela imaginação do leitor e o conto ganha a dimensão de um romance. É concedida ao leitor a liberdade de refletir, fazer suposições, interpretações e, assim, elaborar toda uma narrativa por trás dos interditos.
Nos nanocontos de Rossatto geralmente as palavras escolhidas para a composição do texto são desviadas do seu significado habitual, ganhando uma carga cômica e, portanto, mais expressiva. No exemplo anterior, embora as palavras “epitáfio” e “morreu” pertençam ao mesmo campo semântico de “morte”, elas suscitam o riso pelo fato de terem sido intencionalmente usadas com o fito de satirizar aqueles que, por falta de civilidade, acabam sendo vítimas da sua própria incúria no tratamento com o outro. No conjunto do enunciado, as palavras que remetem à idéia de morte tornam-se mais expressivas, justamente porque habitualmente não se prestam a ressignificações de tom jocoso. Em seu Estética da criação verbal Bakhtin nos oferece o seguinte exemplo: “Neste momento, qualquer alegria é apenas amargura para mim”. Ele observa que o tom da palavra “alegria”, determinado pelo contexto, não é típico dessa palavra. Assim, conclui Bakhtin, “Os gêneros do discurso, no geral, se prestam de modo bastante fácil a uma reacentuação; o triste pode ser transformado em jocoso-alegre, mas daí resulta alguma coisa nova (por exemplo, o gênero de um epitáfio jocoso)”. Daí concluímos que a palavra é expressiva mas essa expressão é determinada pelo enunciado que a engloba. Rir, então, é entender/responder essa expressividade que a palavra ganha no todo semântico.  

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS   
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal (Trad. Paulo Bezerra). 4. ed., São Paulo, Martins Fontes, 2003.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo, Ática, 2008. 




Francisco Paco Souza – paco.souza@live.com / UFSCar

Temos no teatro atual uma dificuldade na definição de suas formas. Vemos peças sendo apresentadas a esmo, com atores muitas vezes despreparados, sem conhecer a fundo a peça apresentada. Vemos também peças apresentadas para um público leigo e alienado, que só se importa se no elenco da peça haverá algum ator televisivo.
O teatro na contemporaneidade mudou, o público que vai ao teatro mudou. Com o surgimento das novas mídias (TV, internet) e a sofisticação do cinema, são poucos os que se locomovem até um teatro para assistir a uma peça.
O teatro tem essa singularidade perante as outras formas de arte, pois necessita que ambos, atores e plateia, se locomovam para aquele determinado local de encenação naquela determinada hora. Não há distribuição em massa quando se fala em teatro, diferente do cinema, por exemplo, em que num dia de estreia há milhares de pessoas em todo o mundo assistindo.O teatro é mais reduzido, só quem está lá naquele momento pode assisti-lo (uma vez que, se gravado, o gênero irá mudar e a obra estética em questão não mais pertencerá ao gênero teatro).
Sendo assim, cada apresentação é única, as formas como os atores irão falar, andar, os erros cometidos ou os momentos de improvisação serão únicos.
Todos estes fatos trazem para o ator uma grande responsabilidade. Figueiredo (2010, pg. 15, 16), fala em seu texto sobre as diferenças cruciais entre ato e ação: “A ação é caracterizada como uma atitude mecânica ou  impensada,  ou  seja,  na  ação  não    o comportamento  responsivo  do  sujeito  que  age  como  um  mero  reprodutor  das  ideologias dominantes  e  não  se  responsabiliza  por  suas  ações  e  pensamentos,  diferentemente  do  que acontece no ato, no qual o sujeito assume a responsabilidade pelo seu pensar perante o outro; é a assinatura responsiva de cada sujeito, única e singular na existência”.
Quando está atuando, o ator está reproduzindo um texto, encenando uma peça teatral de um determinado autor. O ator é levado, através das falas de sua personagem e da situacionalidade da obra, a atuar de uma determinada forma. Vendo deste ponto de vista, ele está reproduzindo ideologias, que não são necessariamente oficiais. Estas ideologias reproduzidas pelos atores podem muito bem ser do cotidiano, porém mesmo assim o ator está, a certo ponto, reproduzindo-as. Poder-se-ia tomar apenas este ponto de vista para analisar uma obra teatral, olhando o ator apenas como um reprodutor de ideologias, porém, tratando-se de uma obra teatral, onde aquele ator encenará uma determinada peça, de um determinado modo apenas uma vez, faz-se necessário responsabiliza-lo pelo que está sendo dito. Em um filme de cinema, onde muitas das cenas são regravadas várias vezes, até chegar a “perfeição” do ponto de vista do diretor, o mesmo pode dar vários palpites, e se ele não gostou de uma cena, ele a muda ao seu desejo. Já em uma peça de teatro, por mais que haja diversos ensaios antes da apresentação, com vários palpites do diretor, é o ator que escolhe se realmente dirá uma fala da forma que o diretor pediu, ele pode simplesmente decidir mudar a entonação, os gestos, ou a própria fala. E é aí que a responsabilidade do ato é atribuída ao ator.
Uma peça é composta de atuações, ou melhor, de atos e ações, pois, ao mesmo tempo em que está reproduzindo ideologias, dando vida ao herói, o ator esta ressignificando a obra e é responsável por todos os enunciados por ele produzidos.
É esta ressignificação, revaloração, que mantém vivas as obras teatrais, um sujeito que vai assistir a uma peça teatral em que há uma consciência por parte dosatores da responsabilidade enquanto reprodutor de ideologias, enquanto corpo físico e estético em cena, poderá ir várias vezes assistir a uma mesma peça e vê-la de vários modos diferentes, temos aqui um acabamento não acabado.
Cada enunciado é um elo na cadeia dos atos de fala, então, não deixem que essa corrente se rompa, ou seja... se a vida é palco somos todos atores e o corpo por si só imóvel fala...e então como se calar diante disso?

Bibliografia:            
Figueiredo, Marina Haber de. Erotismo e contemplação em “Infância”, de Manoel de Barros.  São Carlos : UFSCar, 2011



Contemplação do corpo: uma atitude estética responsiva?
Giovanna Maíra Scoparo[27]
Luciane de Paula[28]

            O olhar, os dedos que passam pelos cabelos, o sorriso. O corpo e o seu discurso. Uma sutileza presente no dia-a-dia do homem que nem sempre é percebida por ele: a materialização da linguagem presente no sujeito.
Cada movimento tem sua explicação. Explicação essa, muitas vezes, desconhecida pelo “outro” que contempla, mas (in)conscientemente consciente por parte daquele (“eu”) que age.
Muito embora haja a perspectiva de outro-contemplador e eu-agente, não se deve deixar de perceber que ambos desempenham os dois papéis, numa segunda e mais abrangente perspectiva que permite observar um “outro”-agente-contemplador e um “eu”-contemplador-agente. Isso se dá porque a manifestação do “eu” nunca está dissociada da do “outro”: ele sempre responde àquilo que foi previamente contemplado.
Segundo Bakhtin,
“Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra “resposta” em seu sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta. Porque o enunciado ocupa uma posição definida em uma dada esfera de comunicação, em uma dada questão, em um dado assunto, etc. É impossível alguém definir sua posição sem correlacioná-las com outras posições. Por isso, cada enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunização discursiva.” (2003, p. 297).

            O discurso do corpo, como todo e qualquer discurso, não se dá ao acaso, mas sim, como dito anteriormente, de maneira (in)conscientemente consciente. Isso porque o sujeito pode não se dar conta do que o seu discurso corporal apresenta e pode até ser enganado por ele. Clássico caso daqueles que não conseguem mentir: o discurso verbal diz algo que é desmentido pela estranheza e nervosismo dos movimentos do corpo. Uma situação menos traumática é o próprio discurso corporal do flerte, que, com movimentos bastante sutis, mostra que o eu (contemplador-agente) se sente atraído por aquele outro (agente-contemplador) que atrai e, muitas vezes, o primeiro nem percebe o quão evidentes são os seus sinais – de natureza muito mais fisiológica do que consciente. Porém, para Bakhtin, a existência é caracterizada por um não-álibi, e, portanto, por mais incoscientes que os atos dos sujeitos possam parecer, ele detém completa responsabilidade e responsividade sobre eles - responsabilidade pelo ato e responsividade aos outros sujeitos no âmbito das práticas em que são praticados os atos, segundo Sobral (2005, p. 20-21).
            De volta ao exemplo da mentira. Há ainda a possibilidade de frieza e indiferença nos movimentos, a fim de não deixar vestígios de que se está mentindo. Nesse caso, o sujeito tem plena consciência dos discursos verbal, não-verbal e sincrético que apresenta. A partir disso, é possível concluir que o ser humano controla, consciente ou apenas fisiologicamente, até o seu discurso corporal, a fim de atingir um determinado objetivo. Isso se dá tanto no cotidiano quanto nas esferas de atividades mais elaboradas – espetáculos de arte, no meio acadêmico, etc.
Para Bakhtin (2003), as esferas cotidianas constituem o gênero primário enquanto os gêneros secundários se referem aos gêneros mais elaborados, que apresentam determinado acabamento, mas, claro, sempre advindos dos gêneros primários. Mas, e ao que diz respeito o discurso corporal, como ele se comporta? A que gênero pertence? A resposta é: o discurso corpóreo (ou corporal) se comporta da mesma maneira que os demais, ou seja, o sujeito possui consciência de seus atos, segundo o filósofo russo. Isso, tanto nas esferas cotidianas quanto em esferas específicas, como as das artes – isto é, organizados em gêneros primários ou secundários. Pensemos, por exemplo, nas artes cênicas ou performáticas. Em especial, no teatro e na dança.
O teatro e a dança, bem como o circo, a ópera e tantos outros gêneros discursivos das esferas das artes, são bons exemplos do controle do enunciado corporal, que se dá de maneira mais estética do que aquela presente no cotidiado.
O enunciado das artes cênicas é minusciosamente organizado, a fim de produzir determinado efeito no seu outro, seu público. Tomando o teatro como exemplo inicial, podemos pensar que ele pode provocar tanto o riso, quanto um efeito catártico. Para tal, o ator, com ajuda de um diretor teatral e até mesmo de outros atores, deve analisar e ter total controle sobre sua expressão corporal, para que produza em seu público o exato efeito que procura. Deve tomar o extremo cuidado para que o discurso de seu corpo não contradiga o discurso da fala da personagem ou mesmo de toda a peça. Uma má execução pode causar o efeito contrário e fazer o público rir quando se esperava que ele chorasse. Este deve ser um dos maiores medos dos atores e, portanto, aquilo que mais os impulsiona para que trabalhem arduamente.
De acordo com a teoria bakhtiniana, o produtor é também contemplador discursivo e vice-versa, uma vez que “eu” e “outro” dialogam e respondem um ao outro. Nesse sentido, pode-se dizer que o ator é, antes de tudo, um contemplador, pois ele deve estar atento aos enunciados corporais, seus e dos “outros”, mais cotidianos e a como eles respondem a determinadas situações. Feito isso, aplica, segundo a necessidade do texto teatral, seu estudo ao discurso de sua personagem.
O trabalho dramático não é idealista – o ator não “encarna” seu personagem e vive, ele mesmo, a catarse ou qualquer outro efeito que queira provocar no “outro” como seu. Pelo contrário, ele tem plena consciência de sua posição dentro e fora da peça. Um exemplo: o clássico Romeu e Julieta, de Shakespeare. O sujeito ator (atriz), ao interpretar Julieta, não estará completamente de fora da peça, uma vez que entrará em cena sabendo que irá sofrer por um amor impossível e, enfim, morrer; mas também não se encontrará completamente inserida na personagem, de modo que sofra e se mate de fato. O que garante a veredictoriedade daquilo que contemplamos é, justamente, a enorme preocupação que a atriz tem em escolher, minusciosamente, quais os elementos que consituirão seu enunciado corporal de Julieta. O movimento corporal, bem como o cenário, o figurino e a maquiagem respondem à proposta do texto e à reação do público. Assim, para produzir determinado efeito, exigido pelo discurso teatral, o ator primeiro contempla os corpos (seu e dos outros), num estudo minucioso dos movimentos que melhor constroem o efeito de sentido desejado para, então, produzi-los no ato dramático da encenação. Em cena ação responsiva e responsável, consciente.
A dança é um pouco mais específica. Ela não se baseia tão amplamente no cotidiano, como faz o teatro. Os movimentos corporais do dia-a-dia são aproveitados pela dança de maneira estilizada (elaborada, estética – com determinado acabamento) e adaptada para o seu gênero, com maior amplitude, na maioria das vezes, e embalados por uma certa musicalidade. O andar na rua não é o mesmo andar na dança.
Ao se pensar na especificidade de cada gênero, pode-se imaginar como o bater das asas de um pássaro representado no ballet clássico é completamente diferente daquele representado na dança moderna. Cada tipo de dança, cada gênero (relativamente estável), tem sua própria maneira de representar aquilo que se vê no mundo, de acordo com a sua proposta, sempre pensando em como este ou aquele movimento surte determinado efeito de sentido no outro, elaborado a partir da observação dele (do outro), em resposta a ele, à vida. Por isso, a arte representa a vida, segundo Bakhtin/Voloshinov (o que aparece em “Discurso na vida e discurso na arte”).
Quanto mais próximo o movimento da plateia, maior a nitidez da responsividade das artes cênicas e do sujeito que as produz (o ator, o dançarino). A dançarina, qualquer que seja seu tipo de dança, quando próxima do público, tende a responder ainda mais claramente aos seus estímulos – com olhares, sorrisos ou outros gestos que evidenciam essa interação e criam o efeito de sentido desejado pelo texto artístico (musical, no caso). Essa é a grande marca, também, do improviso, que responde completamente às manifestações do público (o “outro”) e que está presente na maioria das artes cênicas.
Quando se pensa no clássico comentário “Dançar faz bem para a auto-estima”, uma pergunta persiste em ser feita: será que o discurso corporal transforma o interior daquele que dança ou seria o interior quem transforma o discurso? O artista é responsável e responsivo mesmo a seus próprios desejos e necessidades. É possível que, num dia ruim, triste ou estressante, não tenha uma boa performance. É o interior transformando o discurso – o que é um problema nas artes cênicas, onde se deve ter o maior controle possível sobre o corpo e sua expressão.
O artista deve ter consciência de que ele detem o poder sobre seu enunciado. Mas, e o contrário (o enunciado deter poder sobre o sujeito), existe? Costuma-se dizer que a dança do ventre, por exemplo, faz com que a mulher se sinta mais feminina. Leveza e delicadeza nos movimentos são fatores que podem ser trabalhados, mas que necessitam um /querer/ – partem, portanto, do interior daquela que dança. A dança não /faz/ (trans-forma) o sujeito, mas age ao despertar sua feminilidade latente. O corpo responde mesmo a uma necessidade da própria dança e se manifesta ainda mais claramente em resposta ao eu-outro.
Liapunov (apud BAKHTIN, 1993), em seu prefácio ao livro Para uma filosofia do ato, na edição americana[29], explica essa bilateralidade do ato responsivo:
“E entretanto o ato inteiro, integral, da nossa atividade, da nossa experimentação real, tem dupla face: ele se dirige tanto para o conteúdo quanto para o ser (a real execução) do ato. O plano unitário e único onde ambos as faces do ato mutuamente se determinam (isto é, onde eles formam um todo individido) é constituído pelo evento em processo, único, do Ser. Para refletir-se em ambas as direções (no seu sentido e no seu ser) o ato precisa, portanto, ter a unidade da responsabilidade ou respondibilidade[30] bilateral: precisa responder tanto pelo seu conteúdo sentido quanto pelo seu ser.” (1993, p. 13-14).

Sobral completa, dizendo que:
“(...) a filosofia do ato ético (ou ato “responsível” ou ato responsável) de Bakhtin é, em termos gerais, uma proposta de estudo do agir humano no mundo concreto, mundo social e histórico e, portanto, sujeito a mudanças, não apenas em termos de seu aspectomaterial, mas das maneiras de os seres humanos o conceberem simbolicamente, isto é, de o representarem por meio de alguma linguagem, e de agirem nesses termos em circunstâncias específicas.” (2008)

            Em suma, pode-se dizer que o discurso corporal, assim como todo discurso, é completamente responsivo a uma interação com o outro – seja esse outro um ser humano, o mundo, o gênero ou o próprio corpo. Seu caráter ideológico se apresenta por meio da escolha dos movimentos, no cotidiano e nas artes cênicas, assim como a escolha do léxico, no cotidiano e na literatura. E seu caráter ético, enquanto (inter)ação, marcada por responsabilidade e responsividade.

Bibliografia:
BAKHTIN, M. M. / VOLOSHINOV. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.
___. Discurso na vida e discurso na arte. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza feita para fins acadêmicos. Mimeo, sem referência.
BAKHTIN, M. M. / MEDVEDEV. El método formal en los estudios literarios. Madrid: Alianza, 1994.
BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
___. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Albero Faraco e Cristóvão Tezza para fins acadêmicos, 1993. Mimeo, sem referências.
______. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João, 2010.
SOBRAL, A. “O Ato ‘Responsível’, ou Ato Ético, em Bakhtin, e a Centralidade do Agente”. Signum: Estudos da Linguagem. Londrina, n. 11/1, 2008, pp. 219-235.
______. “Ato/atividade e evento”. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. p. 11-36.



UMA PEDAGOGA NA CINEOP
Por: Glaucia Maria dos Reis Silva[31]
gláucia.mrs@hotmail.com
Universidade Federal de Juiz de Fora

Os três campos da cultura humana – a ciência, a arte e a vida – só adquirem unidade no indivíduo que os incorpora à sua própria unidade.
Mikhail Bakhtin

            Bakhtin em seu texto “Arte e Responsabilidade” leva a pensar sobre o papel que a arte exerce em nossa vida, a “ciência, a arte e a vida” devem estar incorporadas ao sujeito, sendo assim somos responsáveis pelo que fazemos e recebemos.
            Trago para esse artigo minha participação em uma mostra de cinema onde foi possível vivenciar o contato com diversos filmes, pessoas e discussões. A mostra de cinema de Ouro Preto, CINEOP, acontece uma vez ao ano com exibições de curtas e longas que estão fora do circuito comercial, além de oficinas e seminários com estudiosos e especialistas da área. Ao participar deste evento pude assistir a variados filmes e perceber que há um espaço voltado para a discussão da relação entre o cinema e educação, com pessoas de diversas áreas entre comunicação, artes, cinema, educação o que proporciona ao evento uma grande diversidade de público.
            Nesta mostra, participei da oficina “Cinema e Memória” e de vários seminários, o que me possibilitou pensar o cinema na educação enquanto uma forma outra de aprendizagem. O cinema além de recurso didático pode ser visto enquanto arte, desenvolvendo uma educação do olhar, o que significa ir além do que está sendo apresentado nas imagens.
            Bakhtin (2010) mostra que a arte deve fazer parte da vida, desta forma acredito que ao trabalhar com o cinema nas escolas tornamos responsáveis com aquilo que iremos produzir, pois
A vida e a arte não devem só arcar com a responsabilidade mútua, mas também com a culpa mútua. O poeta deve compreender que a sua poesia tem culpa pela prosa trivial da vida e é bom que o homem saiba que a sua falta de exigência e a fala de seriedade das suas questões vitais respondem pela esterilidade da vida (BAKHTIN, 2010 p. 34).

            Ao assumir um papel de educador, este deve se responsabilizar para que os elementos “ciência, arte e vida” estejam incorporados ao sujeito, assim como confirma Freitas (2009) “ser educador é se responsabilizar por essa integração entre conhecimento, vida e arte” (p. 251). Nos seminários da CINEOP, foi possível dialogar sobre o trabalho com filmes, re-pensando uma prática capaz de atuar na formação do individuo enquanto arte e como um elemento perturbador, pois como coloca Bergala (2008) “a arte, para permanecer arte, deve permanecer um fermento de anarquia, de escândalos, de desordem” (p.30) A partir do momento em que a arte nos desestabiliza, somos capazes de incorporá-la à vida, e ao fazê-lo devemos responder por isso através de um ato responsável. A responsabilidade é o que garante a ligação entre o sujeito, a arte e a ciência, de forma que a arte deve estar impregnada na vida, pois como afirma Bakhtin (2010) “Pelo que vivenciei e compreendi na arte, devo responder com a minha vida para que todo o vivenciado e compreendido nela não permaneçam inativos”. Desta forma, acredito que ao trabalhar com o cinema na educação deve haver uma preocupação em torno do conhecimento que será construído, não sendo um simples reprodutor de conteúdos, mas sim como coloca Freitas (2009),
um conhecimento marcado pela beleza da imagem, do som, das letras que fazem rir, chorar e encantar. Um conhecimento que não seja algo estéril, meramente reproduzido e memorizado mas algo que problematize, que leve a buscas de novas respostas, que ajude os alunos a compreenderem e se inserirem responsavelmente no mundo em que vivem. Um conhecimento que transforme alunos e professores não em meros repetidores, mas em autores, autores de suas palavras, criadores de novas possibilidades. ( FREITAS, 2009,p.251)

            A CINEOP contribuiu para que eu desenvolvesse meu olhar sobre as imagens fílmicas, aumentando meu repertorio e repensando minha prática para utilizar e assistir filmes. O texto “Arte e Responsabilidade” mostra que devemos ser “apaixonados” pela vida, respirar e produzir arte assumindo nossa responsabilidade. Desta forma, a partir do estudo do texto e a participação em uma mostra de cinema me situo enquanto sujeito histórico-social a fim de repensar e re-construir minha compreensão do cinema como obra de arte e de como incorporá-lo à vida.

Referências:
BAKHTIN, Mikhail. A arte e responsabilidade. In: Estética da criação verbal. São Paulo: WMF Martins fontes, 2010. 5ª Ed. P. 33-34.
BERGALA, Alain. A hipótese-cinema: pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink; CINEAD-LISE-FE/UFRJ, 2008.
FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Ser no mundo e responder os desafios da contemporaneidade: diálogo de uma educadora com Bakhtin. In.: Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGe. CÍRCULO – Rodas de Conversa Bakhtiniana 2009 – Caderno de textos e Anotações. São Carlos: Pedro & João Editores. 2009. P. 246-251.




Bakhtin e seu método em uma análise da publicidade
Graziela Frainer Knoll[32]

Mikhail M. Bakhtin destaca-se no rol dos filósofos da linguagem possivelmente devido ao fato de que, por mais que estudemos sua teoria, não chegamos a um esgotamento: múltiplas são as formas de enfocarmos seus preceitos teóricos, de trabalharmos com seu pensamento, assim como são infinitas as possibilidades de aplicações. Referimo-nos a seu legado como uma Filosofia da Linguagem porque não se limita à reflexão sobre um objeto ou elabora uma perspectiva linguística ou literária, mas, sobretudo, desenvolve uma visão de mundo e, dessa maneira, provoca uma reflexão em nós mesmos, que temos contato com sua obra.
Em outras palavras, Bakhtin ultrapassa os limites do literário, do texto ou do estritamente verbal para alcançar praticamente todos os aspectos da vida cotidiana. Isso significa que todo o agir em sociedade pode, em algum grau, ser observado pelo prisma bakhtiniano.
Sobre a questão da autoria, convém explicar que há textos assinados por ele e outros a ele atribuídos, como é o caso de Freudismo e Marxismo e Filosofia da Linguagem, originalmente assinados por Valentin Voloshinov (1895-1936); e O método formal nos estudos literários, assinado primeiramente por Pavel Medvedev (1891-1938). A confusão surgiu nos anos 70, a partir de dúvidas levantadas pelo linguista Ivanov, o que nunca se comprovou (FARACO, 2009, p.11-2). Pelo contrário, existem fatos concretos que corroboram que ambos, Voloshinov e Medvedev, foram duas pessoas de fato, não apenas pseudônimos, mas intelectuais que dialogavam com Bakhtin, integrando, juntamente com outros teóricos, o que hoje denominamos o Círculo de Bakhtin.
O Círculo foi esse grupo de estudiosos que funcionou regularmente de 1919 a 1929, intelectuais de diferentes áreas, todos de orientação marxista e preocupados em promover uma discussão crítica e desenvolver dois grandes projetos:
- A Prima Philosofia que objetivava fazer uma reflexão filosófica oposta a qualquer abstração típica do racionalismo. Portanto, o objetivo era pensar na subjetividade, no individual e na singularidade, ao invés de buscar leis universais;
- A Teoria Marxista da Criação Ideológica cujo objetivo era estabelecer o vínculo intrínseco entre linguagem e ideologia.
A produção multiforme do Círculo, materializada no grande volume de textos, ensaios e livros, demonstra a existência de mentes fecundas e inquietas, interessadas em desvendar questões relativas à linguagem, à literatura, à arte, mas sempre em profunda ligação com a vida cotidiana. Vida e arte não se separam. Vida é criação, e a criação é humana.
No Brasil, os pesquisadores brasileiros entram em contato com Bakhtin principalmente a partir dos anos 70. Conforme afirma Guimarães (2001, p. 39), “A década de 70 é o momento em que no Brasil os estudos sobre significação se intensificam e se dão fortemente ligados à consideração das questões do sujeito”. Nesse contexto, os trabalhos de Julia Kristeva também contribuíram para a divulgação da obra bakhtiniana no ocidente. Na época, a linguística dividia suas perspectivas entre os estudos estruturalistas, os semióticos, os discursivos e os enunciativos.
O crescente interesse pela obra bakhtiniana nos círculos acadêmicos revela a atualidade de seu pensamento. Nesse sentido, Faraco (2001, p. 27) afirma que tanto tempo se passou desde a descoberta de sua teoria pelo ocidente e, contudo, Bakhtin continua atual. Sua relevância contínua “pode estar simplesmente relacionada ao fato de que Bakhtin responde, em certa medida, a muitas das demandas [...] nos estudos das questões humanas”.
Também podemos referir Miotello, o qual afirma:
Bakhtin não nos ajuda a explicar a modernidade, nem as mazelas contemporâneas, mas antes se coloca no lugar de um pensador da resistência, da transgrediência, que tem um pensar diferente do que está hoje posto pelas ideologias contemporâneas (MIOTELLO, 2009, p. 165).

Responsável por vários rompimentos ou revoluções teóricas, Bakhtin analisa a linguagem como um constante processo de interação, de maneira que a língua existe em função do uso que os sujeitos (locutores e interlocutores) fazem dela em um contexto de comunicação. Pelo fato de a realidade da língua não estar na estrutura, mas nas interações, a linguagem é analisada do ponto de vista da enunciação, o que valoriza sobretudo a função comunicativa da linguagem. É por uma intenção de estabelecer a comunicação com o outro que o sujeito mobiliza a língua em contextos sociais concretos.
Com a enunciação, Bakhtin vincula o sujeito humano à linguagem, destacando sua condição de ser sócio-histórico. Como afirma Charaudeau (2008, p. 19), “Com a Teoria da Enunciação, a presença dos responsáveis pelo ato de linguagem, suas identidades, seus estatutos e seus papéis, são levados em consideração”. Com o diálogo como metáfora da vida, e o dialogismo como princípio constitutivo, o sujeito se instaura mediante a alteridade e a intersubjetividade, ou seja, é através do reconhecimento do outro que o sujeito constitui a si mesmo.
A enunciação tem natureza social porque o sujeito, no momento em que elabora o seu enunciado, já tem em vista o outro, que será seu interlocutor, em outras palavras, ele elabora o enunciado já tendo em vista a resposta do outro. O ser humano não é um ser individual, é um ser social, e é na relação de um sujeito com outros sujeitos que ele se constitui.
Citando Ponzio:
A revolução de Bakhtin caracteriza-se por haver mudado o ponto de referência da fenomenologia, que já não se coloca no horizonte do “Eu”, mas no horizonte do “Outro”, uma mudança que não só põe em discussão toda a direção da filosofia ocidental, mas também a visão de mundo dominante em nossa cultura (PONZIO, 2008, p. 12).

O enunciado é um ato singular, irrepetível, concreto e vinculado a uma situação de enunciação, pois precisa situar os sujeitos e os enunciados produzidos por esses sujeitos no espaço e no tempo, ou seja, no meio social. O enunciado como objeto de estudo da linguagem deve ser analisado juntamente com o quadro situacional que o engendra. Isso significa que é através da análise de fatores contextuais que se recupera o sentido de um enunciado.
A constatação acerca da relevância das condições de produção, circulação e consumo dos enunciados nos estudos da significação ou dos sentidos abriu caminho às teorias da enunciação ou teorias enunciativas. Conforme Cervoni:
Merece o nome de linguística da enunciação toda linguística que, preocupada em não mutilar demais a análise do sentido, integra um ou outro desses aspectos, que não situa de saída o conjunto da problemática enunciativa à margem de seu próprio objeto (CERVONI, 1989, p. 19).  

A interação só pode ser compreendida e realizada porque existem tipificações no uso da linguagem, o que implica o conceito de gêneros discursivos como construções tipificadas de enunciados. São os gêneros que organizam as atividades de linguagem em determinada configuração espaço-temporal.
Também provém do pensamento do Círculo a idéia de que todo signo é ideológico, ou seja, uma língua não pode ser dissociada dos conteúdos ideológicos que veicula. Nesse sentido, a ideologia como um dado já pronto ou uma ideia individual não existe, ela está inserida no quadro da criação, ou seja, das atividades de linguagem que se expressam por meio de palavras e outras unidades sígnicas. O signo é plurivalente porque diferentes sujeitos de diferentes grupos sociais empregam os mesmos signos da língua, em contextos particulares, o que resulta na produção de sentidos diversos, até mesmo contraditórios. Assim, entende-se que não há transparência na linguagem que reflete e refrata a realidade conforme ressignifica o mundo.
A relação dialógica é determinante na análise linguística, uma vez que o sentido da língua é estabelecido na situação de interação entre interlocutores. Cunha (2005, p. 287) explica a centralidade do dialogismo no pensamento bakhtiniano: “Foi justamente a partir do conceito de dialogismo que Bakhtin elaborou uma teoria do discurso humano, que constitui a base da linguística pós-estrutural”.
Não há palavra que seja a primeira ou a última, mas uma rede dialógica em que enunciados respondem a outros enunciados, e a possibilidade de resposta já é uma forma de ação social, o que nos leva à questão da responsividade e do comportamento ético dos sujeitos. Sujeito ativo e dialógico, o sujeito bakhtiniano é, antes de tudo, o agente humano de um infindável processo social e histórico, a criação ideológica.

Orientações para uma análise da publicidade
Em suma, o legado de Bakhtin é importante especialmente no sentido de que enfatizou a relação entre a linguagem e a ação humana, definindo a linguagem como prática social. Sendo assim, toda pesquisa que se propõe a seguir o método bakhtiniano (BAKHTIN, 2009; 2010) deve abranger ambas as esferas da enunciação: a dimensão social e a dimensão verbal. Na dimensão social, consideramos o sujeito que participa da interação como histórico e social, observando o gênero discursivo, os participantes do gênero (os sujeitos da interação) e as relações entre eles, assim como o contexto cultural em que o gênero se constitui.
Já na esfera verbal, os componentes linguísticos jamais devem ser verificados sob o ponto de vista da abstração ou de aspectos estritamente formais, o que mutilaria a enunciação exatamente naquilo que faz dela um evento discursivo único e concreto, a sua realização como ação linguística e social. Em Bakhtin, a compreensão que o indivíduo tem da língua não está orientada para a simples identificação de elementos normativos, mas para a apreciação de seu uso contextual. Dessa maneira, a palavra enunciada está incluída no contexto histórico concreto de sua realização, enquanto que, para o formalismo, ela é apenas um elemento abstrato, sem os fios que a ligam a uma evolução histórica própria da linguagem.
A perspectiva bakhtiniana não tem como objeto a língua nem a fala, mas a enunciação, produto em que se fundem a linguagem, o sujeito e a história. O sujeito se constrói a partir da interação com o outro nas práticas sociais concretas, sendo tanto constituído, como constitutivo da sociedade. Com isso, o autor defende o vínculo indissociável entre o sujeito e a linguagem e insere esse sujeito na história.
Os componentes linguísticos devem então ser analisados levando-se em conta os aspectos contextuais ou socioculturais. Para tanto, a análise pode ser feita por meio de categorias como subjetividade ou intersubjetividade, signo ideológico, intertextualidade/interdiscursividade, entre outras.
Como afirma Brait (2006, p. 09), Bakhtin não chegou a estabelecer uma teoria ou análise de discurso em termos metodologicamente organizados ou sistemáticos. Entretanto, a teoria dialógica nos fornece uma ampla diversidade de vias de análise, servindo assim como base para os estudos discursivos e contemplando não só a Linguística, mas as Ciências Sociais e Humanas em geral, inclusive a Comunicação.
A publicidade, assim como outras práticas de comunicação midiática, pode ser pensada e analisada a partir da teoria dialógica. Conforme observamos, para Bakhtin o dialogismo consiste na propriedade fundamental da linguagem, constituindo os discursos, os sujeitos e a vida em sua totalidade, portanto, trata-se de um conceito abrangente. Partindo desse conceito, podem ser analisados os discursos produzidos e veiculados nos gêneros publicitários, assim como as relações entre os sujeitos que interagem, o continuum que configuram na esfera da comunicação verbal, os aspectos que se percebem e que se mascaram entre discursos e textos, ou seja, todo o processo ininterrupto ao qual chamamos comunicação.

Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
____ (VOLOSHINOV, Valentin N.). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 13.ed. São Paulo: Hucitec, 2009.
BRAIT, Beth. Análise e teoria do discurso. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006, p. 09-31.
CERVONI, Jean. A Enunciação. São Paulo: Ática, 1989.
CHARAUDEAU, Patrick. Uma teoria dos sujeitos da linguagem. In: LARA, Glaucia Muniz Proença; MACHADO, Ida Lucia; EMEDIATO, Wander (orgs.). Análises do discurso hoje. vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Lucerna, 2008, p. 11-30.
CUNHA, Dóris de Arruda Carneiro da. Bakhtin e a linguística atual: interlocuções. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2.ed. rev. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005, p. 287-294.
FARACO, Carlos Alberto. Bakhtin e os estudos enunciativos no Brasil: algumas perspectivas. In: BRAIT, Beth (org.). Estudos enunciativos no Brasil: histórias e perspectivas. Campinas: Pontes; São Paulo: Fapesp, 2001, p.27-38.
____. Linguagem & diálogo: as idéias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
GUIMARÃES, Eduardo. O sujeito e os estudos da significação na década de 70 no Brasil. In: BRAIT, Beth (org.). Estudos enunciativos no Brasil: histórias e perspectivas. Campinas: Pontes; São Paulo: Fapesp, 2001, p. 39-57.
MIOTELLO, Valdemir. A crise contemporânea como uma crise do ato de pensar contemporâneo. In: MIOTELLO, Valdemir (org.). A arte de consertar locomotivas velhas e o mundo: discursos e palavras sobre crise. São Carlos: Pedro & João Editores, 2009, p. 161-165.
PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana. São Paulo: Contexto, 2008.




CRIAÇÃO COLABORATIVA E TEATRO NARRATIVO: VEREDAS PARA UMA ESTÉTICA RESPONSIVA
Hélio Márcio Pajeú
heliopajeu@yahoo.com.br
Universidade Federal de São Carlos

O processo de criação colaborativo disseminado no Brasil desde a década de 1970, começou a se erigir como o é conhecido atualmente no começo dos anos 1990, em que se destacam a Cia. Teatro da Vertigem e a Escola Livre de Santo André como referências na busca de uma da quebra da hierarquia nas interações criativas na arte dramática entre os sujeitos que as integram. Esse caminho de criação estética se concretiza em uma forma de desenvolvimento de obras dramáticas que têm por alicerce a aproximação entre o dramaturgo, o diretor e o elenco, em um regime de liberdade que objetiva conceber textos dramáticos a partir da criação coletiva, obtendo-se, com isso, um envolvimento na criação de todos os integrantes do projeto, além se configurar como um processo de pesquisa.
O dramaturgo brasileiro Luís Alberto de Abreu (2003, p.33), a quem se pode atribuir parte da paternidade desde processo, o define como uma experiência criativa de natureza dialógica
e coletiva, que tem sido objeto de estudo e desenvolvimento na Escola Livre de Teatro de Santo André, com o nome de processo colaborativo (e não método colaborativo) não só para preservar o caráter vasto e intuitivo da criação, como pelo cuidado, nunca desnecessário, de não objetivar excessivamente o fim pretendido. Não era, e nem é, nossa pretensão estabelecer um conjunto de regras para levar a bom termo a criação de um espetáculo teatral. Sabemos por experiência que a criação artística, embora seja uma geometria racional possui elementos imponderáveis, e não queríamos proceder como se estivéssemos diante de um objeto de estudo apenas científico. Isso não significa que o processo colaborativo abra mão de alguns princípios norteadores, sem os quais os riscos do processo de criação cair num subjetivismo vazio são por demais evidentes.

Esse processo de criação reconhece no teatro uma arte por excelência coletiva e aposta na colaboração e no diálogo entre seus membros como o princípio fundamental da engenharia dramática, irrefutável, para o cabal da sua realização enquanto projeto estético. Destarte, é um caminho contemporâneo de criação que desponta da precisão de um maior contato entre seus criadores, em que todos podem colocar sua experiência, conhecimento e habilidades a disposição do projeto criativo, de tal modo que se desvaneçam os contornos da atuação de cada sujeito.
É por esse caminho que Abreu tem concebido ovacionadas obras dramáticas  que transitam entre a comédia popular e o drama. As obras que carregam sua assinatura, sem dúvida, aparecem coreografias de gestos, de vozes, de outros, dirigidas e ensaiadas sob melodias harmônicas e dissonantes, em que os discursos transitam sem fronteiras claras entre a voz do dramaturgo, a voz do outro e a voz do contemplador, e os atos da vida cotidiana aparecem apoiados pelo visual, verbal, musical, nos entremeios dos jogos cênicos e criativos da arte, do outro, do mundo, que são elementos norteadores do estilo que se materializa no arranjo deste dramaturgo. Assim, sua obra "parece envolver-se na música entonacional e valorativa do contexto em que é compreendida e julgada (este contexto, claro, varia conforme as épocas da percepção da obra, o que cria sua nova ressonância) (BAKHTIN, 2003, p. 411).
Grande parte das experiências de criação estética desse dramaturgo se consolida no seio da Fraternal Cia. de Artes e Malas Artes, da qual é dramaturgo residente, e o caminho percorrido em seus trabalhos de criação tem se fundamentado na possibilidade de instauração de uma horizontalidade entre a obra estética e seus contempladores, entre os artistas no palco e o público na platéia, isto é, tem sido 
do ver ao ouvir e imaginar. Esse conceito, cremos,  sintetiza o caminho que o grupo percorreu nesses anos de sua existência, pois partimos de um espetáculo cômico “dramático”, fechado pela quarta parede do palco italiano até chegar a uma comédia épica, aberta ao público, com a predominância do ator-narrador, inclusive, com algumas experiências fora do palco italiano, em praças públicas. Essa transição do teatro, digamos, de representação para um teatro de narração implicou, obviamente, em toda uma mudança não só na maneira de ver o fenômeno teatral, mas, principalmente, na própria proposta e nos elementos de construção do espetáculo.    (FRATERNAL, 2007, on-line).

É exatamente o teatro narrativo que dá a essa trupe a possibilidade de encenar espetáculos que escapulam do palco e entrem na imaginação de seus contempladores, que já não são meros passivos contempladores, todavia, sujeitos ativos que participam do projeto estético. É pelo percorrer do seu mundo, pela experiência, pela riqueza de sua sabedoria, que a figura do típico narrador passa a existir nas obras de Abreu, se tornando o responsável pela quebra desta quarta parede invisível. Seja no processo de criação, com a narração da história de sujeitos da vida real que são levadas a cena posteriormente, seja na configuração dos seus heróis, porque é ele que
pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia). O narrador assimila a sua substância mais intima aquilo que sabe por ouvir dizer. Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida.(BENJAMIN, 1994, p. 221)

O que faz atrativo a narração ao teatro é a própria possibilidade desta integrar outras ações, é seu poder de fazer funcionar outros textos na ação dramática, pois do contrário seria apenas uma narração. Deste modo, partilho da mesma concepção que acredita Melo (2005, p. 182), isto é, que a
narrativa pode ser, raramente, um gênero homogêneo composto unicamente de sucessões de ações, mas, na maioria dos casos, combina verdades gerais, descrições, diálogos, relato de pensamentos, da mesma maneira que a força do discurso é poder colocar no mesmo espaço discursivo realidades que não podem ser dadas do mesmo modo, que pertencem a mundos diferentes. Assim, como não se podem contar realmente os gêneros, não se podem contar realmente os mundos.

            Vê se, pois, que o teatro narrativo não se trata de um gênero homogêneo, uma vez que nele se dá a possibilidade da integração de uma pluralidade de gêneros outros, como por exemplo, a própria imaginação do seu interlocutor. Logo, participação interativa é algo sine qua non essa perspectiva não se torna possível. Nela os espectadores passam de meros “assistidores” passivos pagantes de um ingresso para partícipes ativos daquilo que acontece no palco. E aí  Benjamin (1994, p. 87) esclarece que “o autocontrole do palco supõe atores que vejam o público com olhos essencialmente outros que aqueles com os quais o domador vê as feras em suas gaiolas: atores para os quais os efeitos não sejam fins, e sim meios”.
Embora, muitas vezes, essa participação não se concretize através de um ato físico, ela ocorre por interferência imaginativa, de modo que a trama não precisa ser encenada o tempo inteiro, no entanto, pode ser narrada, criada na mente do público, estabelecendo um contato mais intimo, mais próximo, mais humano e direto. É ao se passar de um princípio de encenação dramática tradicional, em que a mediação se personifica no herói fechado, aprisionado na cena, para uma outra vertente em que o mediador é também, e diretamente, o público que a cena se expande, se abre, ganha outros horizontes através do sujeito narrador.
Assim, o ator que se apresenta como narrador, é
um sujeito heterogêneo, que nos permite constatar a variação dos modos de organização da narrativa tanto em função dos conteúdos como das capacidades precoces de retomada/modificação dos modelos culturais. Não há apenas competência textual, mas várias. Recontar para nós supõe, então, uma mistura de tipos de usos da linguagem: é preciso apresentar os personagens, descrever, qualificar, introduzir discursos reportados, manifestar as intenções ou sentimentos dos personagens. Todos esses subgêneros vão dicionar a utilização de estruturas diversificadas, quando se tratar de relatar os atos mentais e as atitudes. (MELO, 2005, p. 178)

Deste modo, ao enveredar por uma perspectiva do teatro narrativo Abreu constata algo basilar da interação com seus espectadores: um contato livre, direto, rebento do narrador na visão do público, que faz circular experiências ficcionais, em que, para Melo (2005, p. 181), “as mudanças dos gêneros remetem a variações perpétuas de mundo, que não podem ser reguladas por um metadiscurso, que diria de uma vez por todas: “eis o que é real, eis o que é ficção”.
A Fraternal (2007, on-line) considera que o narrador “não apenas informa, mas transmite experiências vividas ou relatadas de quem as viveu. Sem esse partilhamento de experiências entre o narrador e o público não existe narração. O fato narrado torna-se desimportante e superficial”. A partir das falas de Freire e Abreu (2004, p. 15), respectivamente, diretor e dramaturgo da Cia., vê-se que o teatro narrativo tem importância basal dentro de seu projeto estético, ao afirmarem que ele os
fornece um campo extremamente amplo de pesquisa. Permite romper convencionalismos, dialogar diretamente com o público, fazer um teatro baseado fundamentalmente na imaginação e na relação do narrador com a platéia, eliminando todo o aparato teatral desnecessário. Consente, principalmente, uma liberdade de temas, gêneros e, principalmente, uma comédia reflexiva, mordaz e contemporânea.
           
É a faculdade de intercambiar experiências a partir do narrar que faz a função do ator ser variável, que seu modo de representar muda de acordo com sua função. Tal aspecto ascende do teatro épico, em que
para seu palco, o público não é mais um agregado de cobaias hipnotizadas, e sim uma assembléia de pessoas interessadas, cujas exigências ele precisa satisfazer. Para seu texto, a representação não significa mais uma interpretação virtuosística, e sim um controle rigoroso. Para sua representação, o texto não é mais fundamento, e sim roteiro de trabalho, no qual se registram as reformulações necessárias. Para seus atores, o diretor não transmite mais instruções visando a obtenção de efeitos, e sim teses em função das quais eles têm que tomar uma posição. Para seu diretor, o ator não é mais um artista mímico, que incorpora o papel, e sim um funcionário, que precisa inventariá-lo. (BENJAMIN, 1994, p. 79)

No teatro narrativo a ação teatral sofre um deslocamento. A ação dramática não necessita ser explicitada, não carece ser vista pelo espectador, entretanto, é impreterível que seja fantasiada, que tome forma na imaginação da platéia. Ao ter por baluarte esse ato do público, não mais interessa somente o que ocorre no palco, mas, maiormente, o que ocorre na imanência da fantasia dos apreciadores a partir da narração.
Para Benjamin (1994, p. 203) “o extraordinário e miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação”. Portanto, a arte da narrativa se consolida no aspecto de evitar dar explicações, e esse estudioso (1994, p. 221) explicita que ela “em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito”.
Ao mudar o status do espectador, o ator também re-significa o contexto enunciativo em que ocorre a atividade discursiva, pois, ele já não tem a função, somente, de mostrar as ações dramáticas que dão corpo ao espetáculo, por outro lado, seu desempenho se desenvolve no intento de indicar ao seu espectador para que este fantasie, imagine e vivencie a ação naquele ambiente.
Machado (2010, p. 164) diz que “o ambiente é a condição sem a qual o diálogo simplesmente não acontece. A dialogia de um espetáculo [...] acontece entre signos que ele manipula para interagir com seus interlocutores ou espectadores que, por mais silenciosos que estejam, estão produzindo respostas que, por sua vez, alimentam o circuito da respondibilidade”.
Nesta diretiva os narradores que Abreu dá vida, ao construir uma interação com seus interlocutores, seja o público ou o próprio autor, se instauram eqüipolentes ao seu discurso, numa senda em que o
autor reserva efetivamente ao seu herói a última palavra. É precisamente desta, ou melhor, da tendência para ela que o autor necessita para o plano do herói. Ele não constrói a personagem com palavras estranhas a ela, com definições neutras; ele não constrói um caráter, um tipo, um temperamento nem, em geral, uma imagem objetiva do herói; constrói precisamente a palavra do herói sobre si mesmo e sobre o seu mundo. (BAKHTIN, 2008, p. 15)
       Isso atribui a Abreu, no meu ver, a prerrogativa de ser um autor que compõe uma dramaturgia plenivalente, assim como Bakhtin considera o romance de Dostoievski, o que me levou a observar de certo tempo para cá suas criações, por encarnarem tais características do romance polifônico.
Pensando nesse princípio, creio que a aproximação que tive com o dramaturgo me permita afirmar que no seu processo de criação, ele recorre a procedimentos metodológicos que se inserem na história oral, que segundo Meihy (2005, p. 28) trata-se de “uma metodologia de pesquisa e também uma ferramenta de trabalho que possibilita a coleta de depoimentos individuais ou coletivos estabelecendo posturas e atitudes na história coletiva”. E que na concepção de Montenegro (1994, p. 17) aparece “como um meio privilegiado para o resgate da vida cotidiana, tendo em vista, que esta se mantém firmemente, apesar de poder sofrer alterações como resultados de experiências posteriores ou mudanças de atitudes”.
Isso me leva a crer que o uso deste tipo de procedimento parece permitir ao autor não somente enriquecer seu processo de pesquisa e criação dramática ao desconfigurar uma hierarquia pré-estabelecida entre os sujeitos envolvidos na criação e delinear seu feitio autoral dando vida a heróis senhores de si dentro de uma dramaturgia plenivalente, como também ao permitir uma re-coloração volitivo-emotiva da ação do ator e dos contempladores do projeto estético, que têm a possibilidade de inserir sua singularidade, como ato responsável, na significação do todo arquitetônico da obra encenada no palco.

Referências
ABREU, L. A. Processo colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência de criação. Cadernos da Escola Livre de Teatro de Santo André, Ano I, Número 0, março de 2003, pp. 33-41.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 476p.
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 2008.
BENJAMIN, Walter.  Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. de Sérgio P. Rouanet.  São Paulo: Brasiliense, 1994.  (Obras escolhidas; v. 1).
FRATERNAL COMPANHIA DE ARTE E MALAS-ARTES. Breve histórico. 2007. Disponível em: < http://www.fraternal.com.br/articles.php?id=6>. Acesso em 15 jun. 2010.
FREIRE, E.; ABREU, L. A. As coisas nascem do desejo. p. 11-16. In: FRATERNAL. Bodandá: auto do migrate. São Paulo:Editora EME, 2004.
MACHADO, I. Gêneros discursivos. p.151-166. In: BRAIT, B. (org). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010. 4 ed. 3 reimpressão.
MEIHY, Jose Carlos Sebe Bom. Manual de historia oral. 4 ed. Sao Paulo: Loyola, 2002.
MELO, L. E. Estrutura da narrativa ou gêneros, mundos, lugares discursivos & companhia? p. 177-186. In: BRAIT, B. (org). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2ª ed. Ver. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005.
MONTENEGRO, A. I. História e memória: a cultura popular revisitada. São Paulo: Contexto, 1994.



Imagem/mensagem: A sensibilidade do olhar na construção do texto-imagem.
Ingrid da Silva MARINHO (UFPA)
ingrydmarinho@hotmail.com
Luzia Thamires da Silva Souza (UFPA)
luzidjesus@yahoo.com.br
Universidade Federal do Pará (UFPA)
Orientadora: Profa. Dra. Rosa Maria de Souza Brasil





“A imagem do outro se completa com o excedente da minha visão”
MikhailBakhtin
A fotografia é inclassificável, disse Roland Barthes. A palavra, o texto, a linguagem são frutos da atividade humana e, por isso, não podem ser estáticas, fixas, classificáveis, defende Bakhtin.
Ser humano é significar, afirma Bakhtin, logo toda a ética e a estética estão fundamentadas, nas relações sociais pelas quais os valores humanos se manifestam. Dessa maneira, a palavra, a linguagem, a fotografia, o texto se entrelaçam formando um corpo maior à imagem e semelhança do homem e passam a apresentar uma outra linguagem, aquela que o próprio homem representa: imagem híbrida, heterogênea.
A partir das reflexões acerca de fotografia e texto, signo verbal e não verbal e suas relações, ressaltaremos a importância que cada uma dessas manifestações do “querer-dizer” como se “olha o outro” sob a ótica Bakhtiniana, contribui para o enriquecimento do nosso arquivo cultural enquanto sujeitos participantes de práticas sociais.
Apresentaremos construções de textos heterogêneos (texto/imagem) para fins de análise semiótica, simbólica e discursiva. Essas produções foram possíveis porque reconhecemos a necessidade de sair do campo de visão limitado de uma sala de aula. Abraçamos a proposta do Projeto Entreletras. Decidimos vivenciar experiências “fora-classe” capazes de nos ensinar a ler e a escrever o mundo a partir da atitude ética e estética no mundo. Partindo desse princípio Bakhtiniano, entre as nossas atividades temos “práticas de vivência” das quais retiramos as fotografias e textos que integram o objeto de estudo da presente pesquisa.
Notamos, na prática, que a vivência é o primeiro momento da atividade estética, uma vez que o sujeito se reconhece enquanto ser social, fundamentado na relação com os outros que o constituem como tal. É também por meio da vivência que é possível “olhar o outro de fora”, ou seja, experimentar o fenômeno da extraposição, como afirma Bakhtin:
“O primeiro momento da atividade estética é a vivência: eu tenho de viver (ver e conhecer) aquilo que está vivendo o outro, tenho de me colocar no seu lugar, como se coincidisse com ele (...). Devo assumir o horizonte vital dessa pessoa tal como ela o vive; dentro desse horizonte, contudo, há lacunas que só são visíveis do meu lugar.” (BAKHTIN, 1989, p.30).

Dessa maneira, percebemos que fotografar o mundo tal como ele se apresenta não é tarefa fácil, pois sempre corremos o risco de, simplesmente, transpor imagens sem nenhum diferencial, sem nenhum valor estético. Porém, verificamos no decorrer das várias “vivências” que o importante é educar o olhar, ou seja, quando levamos em consideração o processo de extraposição vinculado ao ato fotográfico, algo de diferente acontece. Segundo Barthes, “perceber o significante fotográfico exige um ato segundo de saber ou de reflexão.” (1984, p.15).
Assim, despertamos para a singularidade do olhar e notamos que o ato de fotografar é uma maneira de dar corpo ao olhar extraposto, ou seja, é uma forma de dar acabamento estético ao excedente de visão. De acordo com Bakhtin, quando assumimos o lugar do outro e retornamos ao nosso próprio horizonte, o nosso olhar começa a mudar. Torna-se um “outro” olhar: